Revejo velhas fotografias de minha viagem ao Monte Atlas, no Marrocos. São imagens pálidas, têm mais de vinte anos. O que consigo ver? Perdida no deserto, espantada, uma ovelha suja e triste observa uma muralha. O que ela vê? Olho para a ovelha, que olha para a muralha, e me lembro de uma antiga anotação de Franz Kafka em seu Diário: “Sinto apenas a violência da vida. E estou absolutamente vazio”. É como se a ovelha, pela voz de Kafka, nos falasse. Logo à frente, descrevendo sua miserável situação, Franz Kafka diz ainda: “Sou como uma ovelha perdida na noite e na montanha, ou como uma ovelha que corre atrás daquela ovelha”.
Também eu me senti, um dia, uma ovelha perdida — ou uma ovelha que seguia uma ovelha que se perdeu. Meu pai dizia: “Você é uma ovelha negra”. Ocorre que eu não era a ovelha negra, eu era a ovelha triste que seguia a ovelha negra. Fui um menino frágil e tonto, era tudo bem pior. Muitos anos depois, em minha viagem ao Magreb — a África Menor dos romanos —, enquanto avanço pelas areias do Saara, tudo me incomoda. O sol, que estilhaça minha pele. O caminho, assimétrico e cheio de rombos, sobre o qual meus pés oscilam. A voz do guia marroquino, em vez de me consolar, me irrita. Em um tom doce e imundo, ele repete: “No problemi, no problemi”. Quer nos acalmar, convencer-nos de que logo chegaremos à aldeia berbere onde seremos os convidados de uma família local, mas só me deixa mais tenso. Por que ele não cala a boca?
Aos poucos, a areia sob meus pés se transforma em um atoleiro. Um lodaçal. O Atlas se agiganta à minha frente. Os passos se tornam pesados, o fardo do corpo me entorta. Ovelhas enfezadas circulam ao longo da muralha, indiferentes ao meu sofrimento. Ouso pensar: será Franz, o grande Franz, uma delas? “Mais devagar”, eu peço, todos pedem, mas nosso guia só sabe repetir: “No problemi, no problemi”, e acelera os passos. Se pisamos todos o mesmo pântano, me pergunto, por que o guia miserável não afunda?
Chegamos a uma encosta. A trilha se torna íngreme e instável. A lama, ou lodo, ou o que seja, se adensa. A cada passo, meus pés afundam ainda mais. Já não consigo armar o passo seguinte. Chega, por fim, o momento em que eu não posso mais me mover. Aferrolhado à lama quente, que me sustenta como um pedestal, passo a gritar por socorro. Não sou o único prisioneiro. Atolados, enterrados até quase os joelhos no pântano podre, uns gritam, outros suspiram de desespero. “No problemi, no problemi”, o guia insiste, ululando como uma hiena. Sorri — como se estivéssemos em uma festa. “Enfim chegamos ao mundo berbere”, ele comemora. “Aqui começa nossa aventura.” Aventura, ou desventura?
Diante das fotografias que agora se espalham sobre minha mesa de trabalho, volto ao Diário, de Franz Kafka. Tento verificar a autenticidade de uma citação que li nas redes sociais. Procuro, procuro, mas nada encontro. Diz o suposto Kafka: “Levar lenta e progressivamente a língua para o deserto. Servir-se da sintaxe para gritar”. As conexões da língua, suas correntes, seus elos, prometem nos sustentar. Nos contrafortes do Monte Atlas, sinto algo assim. É no vazio do deserto que as palavras se agigantam. Mas é lá também que elas revelam sua terrível fragilidade.
O guia continua sua ladainha. Talvez ache que estamos nos divertindo, que o medo nos dá prazer. “Ajuda, ajuda”, grita uma senhora italiana, as coxas redondas afundadas no chão. Eu a amparo como posso. Esperávamos que o sujeito nos desse a mão, mas que nada. As primeiras casas da aldeia de Imlil se erguem logo acima de nós. Já não é uma subida, mas uma escalada. A aldeia se levanta no céu, voa sobre nossas cabeças. Talvez despenque e nos esmague. Talvez nos afoguemos no lodaçal. Só as ovelhas, apáticas, resistem. Quisera ser uma ovelha.
Ser a ovelha que segue uma ovelha perdida, ser a última das ovelhas, isso estava bom. Não sei por que inventei essa aventura, logo eu que não suporto imprevistos. Mas agora é tarde. “No problemi, no problemi”, o guia insiste. Debocha. Apresenta-se como guia oficial, mas talvez não passe de um trapaceiro. Estamos perdidos. Enfim, arrastando nacos de lama na sola das botas, movo-me entre as casas da aldeia. Uma mulher magra e alta se apresenta como nossa anfitriã. Servirá um desjejum típico. Nada disso me interessa, mas agora é tarde.
Tempos depois, os pés ainda retidos no lodo, iniciamos a descida rumo ao deserto. Deslizo na lama — nunca tive muito equilíbrio. Em uma curva, me esparramo no chão. A italiana de coxas imensas, pesarosa, me oferece a mão, mas não tem forças para me erguer. Até que alguém aparece e me puxa. Respiro. Tudo se apaga. É como se eu não tivesse ido a Imlil. Da aldeia berbere, tudo de que me lembro é o lodaçal. O chão que me tragava. Pisar de novo na areia fofa e quente do deserto me alivia. Lá estão as ovelhas, a me observar. Uma delas, quem sabe, pode ser Franz Kafka.
Volto a pensar em nosso guia. Com o Diário aberto à minha frente, novas palavras de Kafka me ajudam: “Tu que conduzes as multidões, grande alto capitão, conduz os desesperados pelos desfiladeiros da montanha que mais ninguém vê, pois estão cobertos de neve”. Só que, no lugar da neve, na aldeia só havia lama. Neve escura, gosmenta, nojenta, desprovida de beleza. Neve morta. Apesar dos obstáculos, meus companheiros de escalada continuam entusiasmados. Menos eu. “O senhor teve uma experiência única”, o guia celebra, “o senhor viveu o Marrocos verdadeiro”. Não me interesso pela verdade. Pergunto-me de que ela vale. Sou um primitivo, sou um bárbaro. Serei eu o berbere? Berbere quer dizer “homem livre”. Livre, eu?
Na despedida, com falso entusiasmo, o guia me pergunta: “Terei a honra de vê-lo novamente?”. Não terá. Deus me livre. No dia seguinte tomo o avião de volta a Casablanca. O deserto, a lama, a muralha, as ovelhas, tudo isso ficará para trás. Restaram as fotografias — as mesmas, amareladas e pálidas, que agora folheio. Lembranças que um escritor deve trabalhar. Escritores são restauradores do passado. Não que o passado volte, ele não volta, mas alguma coisa dele persiste. A visão épica do Monte Atlas volta a ocupar minha mente.