Política e poesia

Os políticos não falam em versos. A respeito dessa insuficiência da política, comenta meu mestre, o argentino Juan José Saer
O argentino Juan José Saer, autor de “A narração-objeto”
01/05/2012

Os políticos não falam em versos. A respeito dessa insuficiência da política, comenta meu mestre, o argentino Juan José Saer (1937-2005): “Se o Estado, segundo Hegel, encarna o racional, a prosa, que é o modo de expressão do racional, é o instrumento por excelência do Estado”. Todos vimos o justo desespero do ex-presidente Lula quando a cruel doença que atingiu sua garganta ameaçou roubar-lhe, em definitivo, a voz. Um político, sem a voz, não é nada. Sem a prosa, ninguém (bons ou maus políticos) governa.

Prossegue Saer — leio seu magnífico A narração-objeto, na edição espanhola da Seix Barral: “A prosa é o reino do comunicável. Em prosa se escrevem cartas, tratados, revistas, anúncios, faturas, denúncias, manuais”. Tudo o que exige precisão e utilidade se escreve em prosa. A poesia, ao contrário, é o terreno do vago e do inútil. Mas não devemos tomar essa constatação como uma acusação. Se o leitor pensar em si, constatará que grande parte de sua vida transcorre numa atmosfera vaga e imprecisa. Se for sincero consigo mesmo, admitirá que grande parte de seu cotidiano é consumido pelo inútil. Somos assim, e é preciso aceitar isso.

Contudo, nessa zona de sombras uma força se ergue: a da poesia. Que não pretende ser instrumento para nada. Que não alimenta objetivo algum. Que não espera de si nenhuma utilidade. Mas para que servem, então, os poetas? A resposta mais correta talvez seja bem dolorosa: para nada. Mas (como escrevo em prosa) busco um pouco mais de precisão: não é que os poetas escrevam para nada, acontece apenas que o nada — tudo aquilo que está excluído do mundo objetivo e das aparências — é seu objeto. Em um tempo dominado pelas imagens como o nosso, eu sei, isso é bem difícil de aceitar.

A poesia serve, ainda, e paradoxalmente, para alimentar os prosadores. “O narrador deve se dar a liberdade de transgredir”, sugere Saer. Que tal infiltrar um tanto de poesia na política? Que bela idéia inundar nosso banal cotidiano com a linguagem poética. O mundo seria bem mais belo. Além disso: seria muito menos rígido. Aceitaria mais as sinuosidades, as diferenças, as surpresas, as incoerências. Seria um mundo bem melhor.

A literatura — poesia ou prosa — guarda esse poder de desestabilização. Diz Saer, sem meias palavras: “A leitura e a fé cega com que se lê estão profundamente ligadas ao tema da loucura”. O Quixote e seus romances de cavalaria. Emma Bovary e seus romances cor-de-rosa. A leitura enlouquece porque arranca o véu que encobre nossa miserável realidade. Não que nos revele a perfeição, ou nos conduza ao paraíso — bem ao contrário! Mas nos livra da arrogância e da onipotência. Nos leva a admitir (o que a física não cessa de dizer) que existem muitos mundos ocultos sob o nosso estúpido mundo real.

No Quixote, de Cervantes, nos sugere Saer, “não existe objetivo”. E isso, não ter um objetivo, se torna um dos fundamentos da literatura moderna. Desde o século 20 — pensem em Kafka, em Joyce, em Virginia Woolf, no próprio Pessoa — a prosa se lança, sem medo, sem medir os riscos, no campo da poesia. As fronteiras entre os gêneros se racham. Toda uma ordem, que vinha do realismo do século 19, despenca. Quando abrimos um livro, já não sabemos onde pisamos. E isso — esta cegueira — define, hoje, a literatura.

Penso que a leveza e a obscuridade da poesia, seu respeito pelo enigma e pelo desconhecido, deveriam envolver todo nosso cotidiano pragmático. Um tanto de desordem, um tanto de loucura nos fariam muito bem! Não para matar a razão (a prosa), mas para alargá-la. Não para nos enlouquecer, mas para nos fazer crescer.

NOTA
O texto Política e poesia foi publicado no blog A literatura na poltrona, mantido por José Castello, colunista do caderno Prosa & Verso, no site do jornal O Globo. A republicação no Rascunho faz parte de um acordo entre os dois veículos.

José Castello

É escritor e jornalista. Autor do romance Ribamar, entre outros livros.

Rascunho