Piglia aprisionado

Tento escrever meu terceiro romance. A experiência é aflitiva: imitando a improvável domesticação dos animais selvagens, lido com um material que, à minha revelia, a toda hora se transforma e se rebela
01/09/2014

Tento escrever meu terceiro romance. A experiência é aflitiva: imitando a improvável domesticação dos animais selvagens, lido com um material que, à minha revelia, a toda hora se transforma e se rebela. Em definitivo: não sou eu quem comando. É muito doloroso aceitar isso. Aceitar que escrever uma ficção é, quase sempre, uma experiência fora de controle. Que o livro segue seu próprio caminho, em absoluta indiferença para com seu autor. Que, quanto mais avançamos, mais contato perdemos.

Encontro consolo lendo uma entrevista de Ricardo Piglia publicada na revista Otra Parte. A entrevista se chama: A narração como iminência do fecho. O remate, ou conclusão, é o enervante destino de qualquer relato. É nele — é a partir dele — que toda a narrativa se desenha e encontra sua forma. Que toda narrativa se forma. “Penso que teríamos que partir da ideia do fecho como lugar de cruzamento entre experiência e literatura”. É ali, onde o real enfim se impõe, que um autor ganha uma assinatura e um texto recebe, enfim, sua legitimidade. É ali, na conclusão, que tudo se organiza e ganha corpo.

Por outro lado, prossegue Piglia, devemos entender o fecho como “uma espécie de constrição, no sentido do Oulipo, isto é, uma condição da forma”. Oulipo foi um grupo literário francês que pregou o estabelecimento de regras rígidas como condição essencial para a escrita literária. O Houaiss define a contrição como “uma pressão circular que faz diminuir o diâmetro de um objeto”. É essa pressão final, como o arremate de um costureiro, a alinhavada final, que acomoda e organiza toda a dispersão anterior. Até chegar ao fecho, toda a experiência do escritor é de desorganização. É de caos. Só o destino final empresta à ficção sua face. Chega-se, então, nos diz ainda Piglia, não a um sentido abstrato, mas “ao sentido para o sujeito mesmo”. Ali uma autoria se ergue e se impõe. Ali o caos se represa e é contido na barreira de um sujeito. O sujeito da ficção.

Mas a parte que mais me interessa — que mais me consola — na entrevista de Ricardo Piglia é aquela em que ele admite seu absoluto descontrole sobre sua escrita. Cheio de coragem, ele nos diz: “Nunca termino de escrever a história que está na origem da narrativa que escrevo. Sempre estou escrevendo uma história que se converte em outra e a ficção toma uma forma que não estava prevista”. O autor pensa que escreve um relato e escreve outro. Pensa que caminha em uma direção, quando na verdade marcha na oposta. Tudo isso é motivo de muita angústia. É a aceitação dessa angústia, porém, que conduz à ficção. Essa experiência de descontrole — que todo escritor sempre experimenta — é, na verdade, a condição de sua escrita. Sem ela, ninguém escreve.

Só porque se descontrola e se perde um autor chega a escrever. Só porque não sabe onde está ele encontra, enfim, seu lugar e sua autoria. Essa aflição primordial exige do escritor uma grande paciência. Precisa suportar a cegueira na qual trabalha. Precisa estar disposto a arriscar-se em caminhos que desconhece. Precisa, enfim, se dar uma intensa dose de liberdade interior, ou a escrita emperra. O mais difícil não é, portanto, escrever, mas se conceder essa liberdade. Por isso mesmo, liberdade podia ser o outro nome da ficção.

Curiosa liberdade, que exige que se passe antes pela experiência de aprisionamento. Mas não podia ser de outra maneira. A liberdade não é tudo, não é ter tudo. A liberdade é a possibilidade de escolher e acessar uma forma. De tomar uma posição, e não outra. O aprisionamento — o limite —, portanto, é condição primordial da liberdade. Sem essa experiência do limite — sem essa experiência da contrição — ninguém consegue traçar um corpo, seja ele físico, ou literário. Prisão e liberdade estão, por fim, intimamente associadas. Só depois de atravessar uma prisão, um escritor pode encontrar a posse de si mesmo.

Contradições
Uma das forças de Piglia como pensador da literatura é a capacidade que tem de se contradizer. De observar os vários lados de uma mesma questão, sem desprezar nenhum deles. De suportar os paradoxos. O fecho de um escrito, ele nos dizia, resolve tudo. É ele que coloca um relato de pé. Pois na mesma entrevista, um pouco mais à frente, o escritor repensa e relativiza o que ele mesmo nos diz. Só a coragem intelectual permite essas guinadas. Só ela aceita que o mundo seja múltiplo e incoerente. Não é nada fácil aceitar isso.

Escreve Ricardo Piglia: “Me parece muito interessante a observação de Walter Benjamin quando assinala que as histórias de Kafka não podem terminar porque o herói não se resigna a abandonar essa busca impossível”. O fecho de uma ficção é, antes de tudo, um ato de resignação. Você aceita que não pode terminar, e ainda assim termina — e isso revolve e desestabiliza toda a escrita anterior. O fecho é um objeto impossível, que o autor impõe ou não a seu escrito. Se não o impõe, esse escrito não termina nunca. Mil direções o atraem, mil caminhos sempre se abrem, e se você se deixa seduzir, se torna impossível terminar. Torna-se impossível fechar uma ficção.

Muitos escritores, como Franz Kafka, porém, não desistem desse objeto impossível — desse fecho perfeito, que vedaria todo o relato — e por isso se recusam a terminar. Não é que não terminem, é claro, toda ficção tem um fim. Mas em seu caso esse fecho não é uma solução, não é um sentido, é apenas uma interrupção brusca. Não passa de um vazio — um abismo — que, subitamente, se abre aos pés do leitor. Ao leitor (por exemplo, aos leitores de Kafka) é preciso coragem, também, para suportar esse falso limite. O texto “parece que termina”, e efetivamente se interrompe, mas na verdade não se conclui. Isto é: não se fecha, permanece aberto — como uma garrafa aberta largada sobre uma mesa.

Ninguém a tampa. Nada pode vedá-la. Essa abertura para o infinito é, para esses escritores, o único destino aceitável. Estranho destino, que não leva a destino algum.

Piglia cita outros exemplos, como O homem sem qualidades, de Robert Musil, ou o célebre Museu da novela, de Macedônio Fernandez. Romances que simplesmente não têm um fim — que simplesmente se rasgam ao final e que, por isso mesmo, talvez nem sejam romances. Neles, comenta Piglia, “não há conversão do herói, não há aceitação do real”. A ficção continua infinitamente, invadindo e tomando o lugar da existência. Lembra-se, ainda, dos romances de Samuel Beckett. “Há que seguir, é inútil, é impossível, mas há que seguir”. Nesse momento, Piglia volta a apontar uma provável confusão que afeta a escrita desses autores e lhes empresta sua singularidade. A de que o fecho seria um destino abstrato — quando ele não passa de um destino (uma escolha) pessoal.

Atitude possível
Volto a pensar no romance que escrevo, que não consigo terminar e que, talvez, permaneça prisioneiro da mesma busca impossível. Busca da perfeição? Busca da exatidão? Procura daquele encaixe irrepreensível que resolveria todas as fissuras e todas as aberturas? Contudo, mesmo ele não existindo, é preciso terminar, no sentido em que sempre chega a hora em que é preciso parar de escrever. Com ou sem um fecho, uma ficção se satura. O autor também se satura. E alguma coisa deve ser feita — justamente aquilo que ainda não consegui fazer. Fazer o quê? Colocar um “fecho sem fecho”, isto é, aceitar que minha ficção não se fechará e que, ainda assim, ou por isso, eu preciso interrompê-la. É um ato arbitrário, que parece meio violento e, especialmente, sem sentido, mas é a única atitude possível. Depois será reler e reler, reescrever e reescrever, até que se possa entender uma parte do que se fez.

Não, jamais, entender tudo — um autor não tem a posse de sua obra. Seria mais aceitar. Colocar limites é saber que, mesmo erguendo fronteiras no lugar errado, mesmo abortando em vez de terminando, aquilo precisa ser feito. Creio, pessoalmente, que essas ficções “sem fecho” continuam a se desenrolar, indefinidamente, na mente do leitor.

Penso novamente nos relatos de Franz Kafka que, como todos sabem, é uma das minhas fixações. Estou sempre a ruminar o destino de O processo, ou de O castelo, mesmo sabendo que permanecerei atolado nessas ruminações. A isso levam os livros: a cogitações profundas — tão profundas quando um fictício oceano sem fundo. A meditações, que se caracterizam sempre pela ondulação, pelos desdobramentos imprevistos e, sobretudo, pela repetição interminável.

Penso em Clarice Lispector — e talvez por isso se diga que ela passou a vida escrevendo o mesmo livro. Vasos comunicantes ligam suas várias ficções. Uma leva a outra, que traz de volta à anterior, que empurra para a seguinte. Elas formam uma mesma ficção de várias faces. Por quê? Porque Clarice nunca pensou seriamente em terminá-las. Uma exceção, nesse aspecto, talvez seja A hora da estrela, que termina com a morte escandalosa de Macabea. Mas ainda esse romance nos deixa diante do abismo. Macabea nos fica como um enigma, algo que tentamos, tentamos, mas não deciframos. Talvez mais coragem ainda do que inventar um fecho seja aceitar que uma ficção termine abruptamente, sem fecho algum. Em vez de delimitar a fronteira entre ficção e real, permitir que a ficção contamine e se espalhe pelo real. Bem, o real está mesmo impregnado de aspectos ficcionais. A separação entre realidade e ficção é sempre dolorosa e artificial. Talvez por isso mesmo Piglia tenha razão: a questão do fecho é a mais crucial e a mais difícil que um escritor enfrenta.

As obsessões
Ainda Ricardo Piglia — a quem volto, agora, através de uma entrevista da romancista Carola Saavedra. O diálogo aparece em Ofício da palavra, volume de conversas com escritores, organizado por José Eduardo Gonçalves (Autêntica). Chego assim, de novo e ainda, a Piglia, lembrado agora por Carola. A literatura é feita de obsessões. Certas ideias fixas passam a rondar nossa mente, a não nos dar sossego, a nos perturbar. Certas falas que, ainda que as deturpando, ou talvez por isso, tomamos como nossas. Certos nomes — Ricardo Piglia, por exemplo. É assim com o depoimento que li, que se desenrola dentro de mim com a lentidão, mas também a pressão, de uma narrativa. Comenta Carola: “O Ricardo Piglia tem uma frase meio radical que diz o seguinte: a literatura é tudo aquilo que você lê como literatura”. Conclui a escritora: a literatura está no leitor, e não no escritor. “Há um exagero nesse olhar — prossegue Carola — mas eu também acredito que, tal como na arte, cada pessoa vai buscar uma definição de literatura”. Para cada escritor, a literatura é uma coisa diferente e é essa, justamente, a garantia de sua riqueza e potência. A garantia de que podemos usar, enfim, a palavra literatura.

É doloroso para um escritor constatar que, uma vez publicado, seu livro já não lhe pertence. Mas isso não é só fonte de incômodo, é também de alegria, pois só assim um livro se multiplica em vários livros. Cada leitor lê um livro como quer e como pode. Faz dele o que bem deseja. Cada leitor nele encontra o que bem deseja — e se cega para o que deseja também. Não é que esteja cego: é que encontrou, enfim, sua maneira de olhar (de recortar as palavras). Só quando o leitor encontra sua própria via de leitura, um livro ganha vida. Todo leitor, portanto, é radical em sua forma de ler. É essa radicalidade — que assusta um pouco Carola — que transforma alguém em leitor. E, em consequência, transforma alguém em escritor.

Por isso é tão absurdo o esforço de certos professores que tentam ensinar a seus alunos a melhor maneira de ler um livro. A leitura correta é um contrassenso, já que é próprio da leitura o erro. A ideia de correção só encarcera os leitores — só lhes amordaça e cala a mente. Só os impede de chegar a sua própria leitura, a seu próprio “falatório” íntimo, que é, no fim das contas, a única coisa que interessa. Livros grudam na mente de seus leitores — ou simplesmente são descartados, não são lidos. Ou até pensamos que lemos, mas tudo o que se passa é uma encenação. A quem enganamos? Não ao escritor, mas a nós mesmos. Literatura nada tem a ver com desempenho e pose. Não diz respeito a performances ou pontuações. A literatura não pode ser medida.

Ler não é só ter um livro aberto diante de si, mas é ter um livro cravado dentro de si. Um texto — qualquer texto — só se transforma em literatura quando nos invade, nos desloca e nos interroga. O bom leitor, portanto, não é aquele que lê respeitosamente. Não é aquele que lê segundo os cânones, ou a tradição, mas aquele que encontra sua própria forma (torta e única) de leitura. Piglia está certo: é o leitor que, nessa contorção interior, que o leva a engolir um livro como a um alimento, que faz da literatura, literatura. No mais, existem as regras do “bem ler”, existem as teorias e as técnicas, existem os manuais e os compêndios — mas nada disso diz respeito à literatura.

Afirma Piglia que “a literatura é tudo aquilo que você lê como literatura”. Talvez seja uma forma de dizer: “a literatura não está no livro, mas está entre o livro e seu leitor”. Não é aquele amontoado de letras, também não é o conjunto de conceitos (preconceitos) que o leitor traz dentro de sua cabeça. É algo, talvez, imaterial. Algo que “se passa” — como um empurrão, um susto, ou um trovão. Algo que acontece e deixa uma marca. Você pode me dizer que tal livro é genial. Mas se ele não me atravessar, se ele não me marcar, pelo menos para mim, literatura não será.

NOTA
O texto Piglia aprisionado foi publicado originalmente no blog A literatura na poltrona, do caderno Prosa, do jornal O Globo.

José Castello

É escritor e jornalista. Autor do romance Ribamar, entre outros livros.

Rascunho