Lendo Previsões de um cego, de Pedro Maciel, uma ficção que se desmancha em uma colcha atordoante de fragmentos, deparo com uma anotação que me faz pensar no destino descentrado dos escritores. Diz o narrador de Pedro, um prisioneiro que escreve, no leito de um hospital, o que parece ser um romance chamado O livro dos esquecimentos: “O que é uma sombra? Uma sombra é um reflexo de uma infinidade de sombras. Não posso ver as minhas sombras, mas sei que sou eu tresandando fora de mim”.
Interessa-me aqui, antes de tudo, a idéia do movimento para fora de si. Escritores estão acostumados com esses transportes extremos. Acostumados, não, porque sempre lhes causa angústia: estão viciados. Vamos admitir logo que a literatura é um vício. Você sente uma dor, uma dor qualquer, algo que o amargue e aflija, e então se agarra às palavras. Da dor, você escreve. Na palavra, busca um esboço de salvação. A partir da dor, não necessariamente “sobre a dor”, surgem as ficções.
Há a hipótese (falsa) da fuga: aos despreocupados, parece que o “sair de si” não passa de uma maneira de fugir. Os escritores seriam, no fundo, covardes. Por covardia, e não por vocação, entregam-se à mania da escrita. Não vejo assim. É bem mais confortável a indiferença. A imobilidade não desgasta, não expõe, não atordoa. Já quem experimenta esse movimento para fora que nas palavras se promove desgasta-se, expõe-se, opta pelo desassossego. Em resumo: arrisca-se a lançar-se além (ou aquém, não importa) de si mesmo.
Mas por que então escritores escrevem? — você pode perguntar. Se não é para fugir, seria para alargar o sofrimento? Se não é pela anestesia, seria pelo prazer de torturar-se com a degustação das feridas? Esquecem-se os que pensam no Autor como sinônimo do Eu que, como escreve Maciel através de seu doente, “uma sombra é um reflexo de uma infinidade de sombras”. Ao escrever, o sujeito se entrega como ponto de entrecruzamento. Pense na confluência de várias avenidas, com seus viadutos, túneis, pistas triplas, desvios. Ali, bem no centro, em pleno miolo (no caos), bem ali, o escritor se posta. Ali ele se oferece como o eixo (ou reflexo) de uma infinidade de caminhos.
Caminhos ou, como sugere o dolorido personagem de Maciel, sombras? Avanço um pouco mais na leitura de seu belo livro. Pergunta-se (ilude-se) o protagonista, perfilando-se diante do impasse que me atormenta: “Amanhã vou me lembrar das lembranças para voltar a ser eu mesmo?”. Contudo: haverá um “eu mesmo” sem esse emaranhado de sombras? O próprio narrador me ajuda, ao dizer: “Desmemoriados, quando sonham, inventam novas lembranças, como se fossem memorialistas”. Livres das amarras do “Eu mesmo”, os sem-memória conseguem se entregar, com placidez, à reinvenção do que viveram. Conseguem recriar o que vivem. Rever, repensar, reverter. E ir em frente.
Escritores são homens sem memória. Até os mais cuidadosos memorialistas estão incluídos nessa categoria. A memória é frágil, está repleta de fantasias, surge cheia de deformações. Escritores não só enfrentam isso, mas se alimentam disso. Estão cegos para as circunstâncias do presente, e só assim, porque se cegam, conseguem rever, ou prever. Conseguem coragem para fazer aquilo que resta a todos nós, pobres humanos, entregues ao joguete do tempo e do destino: conseguem inventar. Pois, deformando o poeta, posso dizer: inventar é viver.