Deparo com alguns versos luminosos, embora ásperos, de Paul Auster, que se guardam em seu Todos os poemas, lançamento recente da Companhia das Letras. Dizem: “onde quer que estejas/ está o deserto contigo./ Como se,/ onde quer que te movas, seja/ novo o deserto,/ e se mova contigo”. Acabo de voltar de uma semana no interior do Rio Grande do Norte, para uma “Viagem literária” promovida pelo Sesc. Atravessei o sertão do Seridó, no sul do estado, para chegar a Caicó. O deserto me devorou, sua paisagem larga e repetitiva fragmentou meu espírito. Levava uns versos de Auster anotados em um caderno de bolso. Em Caicó, eu os reli e reencontrei os que agora repasso a meus leitores.
Desertos sempre me interessaram. Lembro da travessia que, uma décadas atrás, fiz de Asswan até Abu Simbel, na fronteira do Egito com o Sudão, em uma caravana que flutuava em meio a tempestades de areia. Recordo, também, de uma viagem até Picos, no sul do Piauí, que realizei para uma reportagem sobre a seca nordestina. Nunca estive no deserto do Atacama, um dos sonhos que pretendo, logo, realizar. Quando menino, com meu precário telescópio, e inspirado pelas leituras de Júlio Verne, sonhei, muitas noites, com uma viagem à Lua, o deserto branco. No sul do Marrocos, rumo ao monte Atlas, deparei com vazios improváveis, que só acreditava existirem nas narrativas de Verne, ou em meus pesadelos.
Tenho muitos pesadelos com desertos. No mais comum deles, a areia — aberta em imensas bocas — me engole. Sempre gostei das aventuras de Tarzan e de suas lutas contra as areias movediças que se escondem na selva. Quando menino, em torno dos quatro anos de idade, quase fui tragado por um pântano, em uma fazenda no interior de São Paulo onde minha família passava férias. Minha madrinha, Maria da Paz Guimarães — hoje prisioneira de um asilo em Vinhedo —, colocando em risco a própria vida, me salvou. Nos meus pesadelos, que talvez provenham dessa experiência traumática de infância, as areias se movem, mas não são pantanosas. São secas, como os versos de João Cabral, e penetram em minhas narinas, entram em meus ouvidos, lutam para tomar posse de meu miserável corpo. Ainda assim, e mesmo horrorizado, não consigo deixar de admirar a beleza do deserto em que me atolo. A areia imensa que me mastiga, bela, ainda que horrenda.
Com meu amigo e irmão Flávio Stein, converso sempre sobre os ensaios do catalão Rafael Argullol, um filósofo (como Auster) interessado no vazio, no abismo, nos desertos e no nomadismo. Acredito que somos todos nômades e por isso sempre carrego comigo pelo menos um livro. Livros: neles me agarro para não afundar, para não perder o norte, para que as areias de meus pesadelos não me traguem, para não perder o controle sobre meus nervos. Nos aviões, durante as turbulências, leio poemas. No cotidiano, durante o vazio da tristeza, apego-me aos romances. Meu querido Flávio se tornou meu irmão porque dividimos a mesma crença: a de que a literatura, no mundo indecifrável de hoje, se tornou matéria de salvação. Pelo mesmo motivo, admiro tanto a literatura de João Gilberto Noll — um escritor que tenho na conta de uma alma gêmea: porque seus personagens nunca sabem onde estão, porque desconhecem o caminho que seguem, ignoram os motivos de seus esforços. Têm a alma deserta — e, por isso mesmo, pronta para a descoberta e a transformação.
A potência do deserto: lembra-me Paul Auster que o deserto se move comigo. Adverte-me de que disso não escaparei. E faz dessa advertência um poema, onde me fornece um esboço de saída: “tornar-se/ o onde estás”. Chegar a si. Cair em si. “Ser-se.” Desertos realizam essa manobra de retorno, que nos traz de volta a nós mesmos. Desertos — estranho isso que agora me sai — se parecem com espelhos. Em sua paisagem opaca nada mais nos resta do que nos observar. Assim fiz durante a travessia do deserto do Seridó, enquanto lia os poemas de Auster entre um devaneio e outro (e tentava ler também os ensaios de Silviano Santiago para me agarrar a alguma consistência). Ali, a paisagem dava as regras. Ela me dirigia, o desolamento dava as cartas.
Enjôo nos carros, preciso tomar dramin ou não consigo ler sem que náuseas atrozes me possuam. Sou assim desde menino. Fala-nos Auster de uma “palavra-meteoro, rabiscada pela luz”. O que ela rabisca, o que deixa cair? É o deserto, o próprio deserto — sertão, desertão — que cai sobre mim. Que me empurra de volta para mim mesmo. No mundo de hoje, tudo nos puxa para fora. Os desertos, ao contrário, nos empurram para dentro. Desertos são espelhos tenebrosos, que não nos poupam nem do pior, nem do melhor. E talvez o mais difícil seja isso: aceitar o melhor. Na literatura, ele se guarda “nos livros”. Mas e quando não estamos a ler? O pior e o melhor é tudo o que temos. Na travessia dos desertos, eles se espalham, se desenrolam como tapetes perversos, nos arrastam de volta em nossa direção. O Seridó — esta é a verdade — me devolveu a mim mesmo.
Quando lhe descrevi minha experiência, meu amigo Lívio Oliveira, poeta potiguar nascido no sertão, me olhou de um jeito comovido. Na apreciação do deserto nos irmanamos. Testemunhas um do outro, apesar da diferença de idade, dali procedemos. Nasci no Rio Comprido, logo me levaram para Copacabana, mas sempre carreguei um deserto dentro de mim. Deserto que a literatura (Auster) acolhe e a que dá sentido. Deserto, no fim, que é a nossa origem e o nosso destino. Amigos me emparam: Lívio, Tácito, Nelson, Demétrio. Eles me ofereceram suas mãos para abrandar a dor da travessia. O deserto continua, mas sou muito grato a todos eles.
NOTA
O texto Paul Auster no deserto foi publicado no blog A literatura na poltrona, mantido por José Castello no site de O Globo. A republicação no Rascunho faz parte de um acordo entre os dois veículos.