Papini e Behr

A literatura se alimenta de zonas de sombra, é um animal desdentado que rumina um alimento invisível
O italiano Giovanni Papini, autor de “O espelho que foge”
01/01/2011

Papini, o mudo amordaçado
A literatura se alimenta do silêncio. Dizendo talvez melhor: ela é a face visível do silêncio. Todos carregamos um ruído incompreensível no peito. Não chegamos a ouvi-lo, e nem temos certeza de onde exatamente ele vem. Não passa de um murmúrio. É o vestígio do silêncio, de que a literatura se alimenta.

Esse murmúrio lateja no centro das ficções. Por exemplo: leio História completamente absurda, um dos contos de O espelho que foge, livro do italiano Giovanni Papini. Tenho a tradução espanhola de Horacio Armani, em edição organizada por Jorge Luis Borges para a Ediciones Siruela, de Madri. Nela me deparo com pegadas do que, inutilmente, tento dizer.

Vocês, que me lêem, sabem: cheguei ao tema do silêncio depois da leitura de um ensaio da psicanalista Maria do Carmo Andrade. Cheguei e — em um desses choques que constituem a literatura — encontrei palavras (sempre elas) que me conduziram a um silêncio pertubador. Estranho: ler para calar. Talvez melhor: ler é calar. Os leitores, sempre silenciosos, não são uma prova disso?

Agora leio Papini (1881-1956), um escritor esquecido, que se refugiou no catolicismo, aproximou-se perigosamente do fascismo e tem sua imagem, por isso, quase sempre reduzida (esmagada) à de um simplório autor de sátiras. Vocês sabem: estou muito distante do catolicismo e, mais ainda, do fascismo. Isso não me impede, porém, de apreciar a ficção de Papini. Mais ainda: de nela encontrar uma potência que nem sempre vejo em escritores com quem divido fortes afinidades intelectuais.

A literatura não é uma questão intelectual, religiosa ou política. É verdade: ela produz fortes desdobramentos tanto na política, como na religião, mas seu coração está em outro lugar. Que lugar? Na zona de silêncio que a constitui e sustenta. A literatura tem um centro vazio. É como uma rosca: só saboreamos suas bordas.

A leitura de História completamente absurda não me conduz a lições edificantes a respeito da fé, ou a reflexões repugnantes a respeito do poder político. Ao contrário: delas me afasta! Talvez, quem sabe, Panini, o vaidoso, se decepcionasse com isso. Talvez, ao contrário, apreciasse minha reação. São apenas conjeturas. Nada disso tem importância.

Volto ao conto de Giovanni Papini. Um homem recebe a visita de um desconhecido. Ele lhe faz uma proposta: lerá um relato que escreveu, oferecendo-o ao julgamento de seu hóspede involuntário. Trata-se da única ficção que produziu em vida, nela deposita todas as suas esperanças.

Antes de começar, propõe a seu hóspede um acordo. Se apreciar a narrativa, ele o ajudará a publicá-la e a se consagrar. Se, ao contrário, a odiar, ele, o infeliz autor, cometerá suicídio. Sem saber por que faz isso, o narrador de Papini aceita a proposta absurda de seu visitante.

O visitante misterioso lê seu livro. Com o avançar da leitura, o hóspede é tomado por uma intensa perturbação. Trata-se, ponto a ponto, detalhe a detalhe, da história de sua vida. Relata não apenas eventos concretos, mas sentimentos íntimos, segredos, vaguíssimas impressões. Ele está inteiro no que ouve.

Não pode permitir que o estranho publique o livro e revele sua intimidade. Não vacila: “Sua história é estúpida, aborrecida, incoerente e abominável”. A reação do visitante é dolorosa, pois — como todo escritor — ele acredita na valia do que escreve. Mesmo assim, sereno, pede que seu hóspede o acompanhe até um rio. Agarrado a seu livro, atira-se na água.

Para o narrador de Papini, pior que ter sua vida revelada pela ficção, era ter o segredo de sua vida roubado. O escritor violara seu silêncio. Com seu escrito, o desconhecido roubara sua alma. Agora também ele se sentia um pouco morto. Afastara-se de si. Estava, ele também, afogado.

Ele mesmo tomou as providências para seu funeral. Um amigo lhe trouxe flores e ele pediu que esperasse para depositá-las sobre sua tumba. Ninguém o salvaria — nem mesmo o suicídio (o silêncio) do ladrão de almas fez isso. Um silêncio não substitui outro silêncio. Embora, vistos de fora, todos os silêncios se pareçam, cada um carrega uma dor diferente.

O relato de Papini — que selecionei ao acaso em minha biblioteca para ler durante uma viagem de Curitiba ao Rio de Janeiro — trouxe-me de volta um tema que já tenho nas mãos. Também o acaso (como a literatura) trama em silêncio. Todos vivemos de nossos segredos. “Somos” nossos segredos — essa região inacessível, que cada um carrega como pode, e que Maria do Carmo denomina de sagrado. Não um sagrado que remete a um deus, ou a alguma elevação; mas um sagrado laico, que conduz ao próprio homem. Única via de acesso a nós mesmos.

A literatura se alimenta dessas zonas de sombra. A literatura é um animal desdentado que rumina um alimento invisível. Ao escrever, o escritor regurgita um pouco aquilo que é. Mesmo a mais banal ficção vive disso.

É preciso cuidado com a literatura. Ela é muito mais que sucessos de livrarias, listas de best-sellers, ou prêmios literários. Está muito além dos negócios editoriais e da vaidade dos escritores. Nada disso, a rigor, se relaciona com a literatura.

A literatura é outra coisa. Nem católica, nem fascista, nem premiada, ou fracassada, ela é a única via de contato com uma zona de silêncio que, de outra maneira, permaneceria para sempre inacessível. Zona secreta, cujo destino nenhum mapa revela e que, mesmo assim, ou por isso, nos constitui como homens.

Giovanni Papini conhecia esse segredo. Por isso, permaneceu indiferente a seus detratores. Conservou-se mudo, aferrado a seu silêncio, sem permitir que a zoeira do mundo, na qual ele mesmo estava mergulhado e saboreava como um veneno, atingisse sua escrita. Foi amordaçado por isso: por isso nós o abandonamos e esquecemos. Não suportamos seu silêncio ensurdecedor.

Behr, Pessoa e o instinto
Leio os poemas de Nicolas Behr, reunidos em Brasilíada, e penso no Dr. Gaudêncio Nabos, um dos mais discretos heterônimos de Fernando Pessoa, que um dia escreveu: “Ter estado num naufrágio ou numa batalha é algo belo e glorioso; o pior é que teve de se lá estar para se ter lá estado”.

Penso em Behr porque muitos o vêem como um “poeta datado”, como se o relógio, em um acesso de estupidez, perseverasse na mesma hora. Outros se incomodam com sua indisfarçável tristeza. Há em Nicolas Behr — com quem almocei em Brasília há algumas semanas —, de fato, uma postura dolorosa de resistência, que ele expressa, no entanto, com suavidade e elegância. A que resiste Behr? Ao presente. Por isso mesmo, outros o admiram porque “instintivo”.

Não podemos, contudo, confundir a resistência com a paralisia, nem a recusa com a morte. Tanto que Behr, mesmo acuado e insatisfeito, continua a escrever. Quando resistimos? Quando algo que nos é precioso está sob o risco de perda. Resistir é bordejar o vazio, ou a perspectiva dele. Ninguém se torna poeta, porém, sem a experiência do vazio. A palavra é um avanço do afeto sobre o instinto. Na Brasília desfigurada em que Nicolas Behr caminha, faltam sempre muitas coisas. Que coisas? A própria Brasília, que se torna, nesse caso, só um nome. Um envelope — um inútil ideal. Que ele, num insistente gesto amoroso, luta para restaurar.

Pergunto-me, ainda assim, o quanto há de pessimismo na postura firme de Nicolas Behr. Esse pessimismo se apresenta como uma resistência ao presente e as suas insuficiências. O presente é sempre um pouco infeliz, um tanto incompleto, decepcionante, e por isso presente é. Fosse futuro, e não existiria, seria só alucinação. Fosse passado, e seria uma ruína. O presente, para repetir Fernando Pessoa, “é o que é”. E é disso que devemos partir, ou não haverá partida. Não haverá poesia. E presente algum.

Rememoro as circunstâncias em que essas idéias me vieram. Lia os versos de Behr e pensava em Leyla, minha irmã mais velha, que habita Brasília desde sua fundação. Na mesma semana em que almocei com o poeta, hospedei-me com ela mas, como em um
pesadelo do qual o real escorre, minha irmã não estava onde devia estar. Um mal-estar passageiro a levou para alguns dias em um hospital. Visitei uma ausente. Assim como Behr, que habita uma cidade que já não vê, estive com uma querida irmã que não estava lá também. Logo depois de minha partida, ela recebeu alta e voltou para casa. Resta-nos sempre a assinatura da verdade, que empresta contorno a nossas miragens e nos salva.

Por que relembro essas circunstâncias? Por que falo de Leyla? Ocorre que, estando onde minha irmã não estava, pude compreender Behr um pouco melhor. Pude entender que sua resistência não é só negação, mas afirmação, embora sofrida. A dor persiste na poesia de Nicolas Behr e isso vai muito além de qualquer coisa que possamos dizer a respeito. Penso, uma vez mais, em Pessoa, que escreveu: “O homem não sabe mais que os outros animais; sabe menos. Eles sabem o que precisam saber. Nós não”.

A citação de Pessoa carrega uma aposta na natureza, como último reduto da serenidade e da verdade. Observo-a, agora, com suspeita. Basta observar o sofrimento dos animais, em coleiras, em granjas, em rebanhos, em matadouros, para compreender a que terríveis destinos a ausência da palavra e a prisão no corpete do instinto os conduzem. É bem melhor falar.

José Castello

É escritor e jornalista. Autor do romance Ribamar, entre outros livros.

Rascunho