Sempre que preciso me alimentar de ideias, percorro as páginas — que anotei com voracidade — de livros como O romancista ingênuo e o sentimental, de Orhan Pamuk. Tenho muitos livros fartamente anotados e, portanto, ilegíveis, ou melhor, talvez legíveis apenas por mim mesmo. É o caso desse precioso ensaio de Pamuk, a que frequentemente recorro nos momentos de dúvida ou de vacilação.
Não compartilho (preciso admitir) de todas as ideias do escritor turco, mas aprecio muito, entre tantas outras, suas reflexões a respeito do clássico paralelo entre a literatura e o espelho. Todo leitor, quando abre uma ficção, busca um espelho. Busca uma imagem, ainda que deformada, de si, que o ajude a se interrogar a respeito de si mesmo. “Evidentemente, não existe espelho perfeito”, Pamuk nos alerta. “Só existem espelhos que correspondem perfeitamente a nossas expectativas. Todo leitor que decide ler um romance escolhe um espelho de acordo com seu gosto”.
Mais do que nos mostrar a verdade, a literatura (espelho deformante) nos estimula a nos interrogar a respeito de sua constituição. Abre caminhos, apresenta novas dúvidas e perspectivas, incita-nos a experimentar ideias que antes desprezávamos. Pamuk nos mostra que não existe o espelho perfeito. Cada leitor escolhe seu espelho e nele se vê de uma maneira diferente. Mesmo as narrativas mais realistas, que nos dão a impressão de apresentar uma verdade límpida, deformam e tornam a realidade mais complexa. Isso se são literatura mesmo.
Por isso mesmo, prossegue Pamuk, um escritor não se revela pelos “conteúdos” de seu livro, mas, sim, por seu estilo. Por sua maneira de abordar e observar a realidade. Por sua perspectiva, pelos pontos de vista que privilegia, e também por aqueles que descarta e despreza. Recorda Pamuk do dia em que uma leitora desconhecida, uma respeitável senhora, lhe disse: “Senhor Pamuk, eu li todos os seus livros. Eu o conheço muito bem, o senhor ficaria surpreso”.
O primeiro sentimento do escritor diante do comentário da desconhecida foi o de ameaça. Sentiu-se nu. Quantos de seus segredos íntimos aquela mulher teria descoberto? Mas não, mais tarde ele pensou melhor: aquela mulher não quis dizer que conhecia sua vida particular (espelho), mas que conhecia sua maneira de ver o mundo. “A velha senhora não estava confundindo minha história com as histórias de minhas personagens fictícias. Ela parecia falar de algo mais profundo, mais íntimo, mais secreto, e senti que a entendia”.
Se a literatura fosse um espelho que refletisse ponto a ponto a realidade, não precisaríamos dela, a realidade nos bastaria. Mas não é assim: ela a esgarça, ela a expande, ela nos mostra sua precariedade e seus frágeis limites. Ela nos leva a entender que outras coisas (o real?) lateja sob aquilo que vemos e que tomamos como a realidade do dia a dia. É assim, dessa forma torta, e não como panfleto, ou três por quatro, ou como fotocópia, que ela nos dá acesso ao mundo em que vivemos.
Literatura e ignorância
Volta-me, de repente, a célebre sentença do poeta alemão Friedrich Hölderlin: “O homem é um deus quando sonha e um mendigo quando pensa”. Ela me adverte a respeito da arrogância. Da importância de dizer, saber dizer “não sei”, “não consigo entender”, “estou perplexo”. Ela nos aponta para os dolorosos limites do saber. Vão no qual a literatura — que é sonho — se acomoda, não para explicar, ou dar uma solução, mas para alargar o campo fértil da dúvida.
Lembranças, soltas, incoerentes, me tomam. Recordo aqui de uma das visitas que fiz a Hilda Hilst em sua Casa do Sol, sítio na periferia de Campinas em que se isolou do mundo. Levou-me à cozinha. Enquanto eu tomava uma inocente cerveja, ela se agarrava, com força e fé, a uma garrafa de uísque, que saboreou puro e sem gelo. “Sabe por que me apego ao uísque?”, perguntou-me de repente. “Porque ele me faz esquecer. Esquecer que não sei.”
Naquele fim de manhã, quente e luminosa, conversamos justamente sobre isto: como é difícil aceitar que não sabemos; como é doloroso encarar as fronteiras de nosso pequeno saber; como é importante considerar que, mesmo quando sabemos, ainda sabemos muito pouco. Falamos então sobre a literatura que, despida de arrogância, se acomoda nesse vão da ignorância para dele fazer uma terra fértil. A literatura que é feita daquilo que não sabemos. Que os escritores praticam não para mostrar o que sabem, mas para mostrar o que não sabem. (Estarei relembrando o real, ou apenas um sonho que produzi para encobrir meu esquecimento do real?)
Por isso, sempre me assusto quando encontro especialistas cheios de si, que se julgam senhores de suas ideias, que acreditam manejar com frieza e brilho as estruturas de seu miserável saber. Que não suportam a ideia de um saber miserável. Inútil? Não. É o que temos. Muito útil, portanto, mas ainda assim miserável, insuficiente, cheio de lacunas e de falhas. Parcial e humano.
Em tudo isso, a literatura, que é pura ronda delicada em torno da verdade, nos leva a pensar. Como sabemos pouco. Quantos são os caminhos à nossa disposição que nunca consideramos percorrer. Como é impossível saber tudo e, portanto, como são necessárias prudência e delicadeza no manejo de qualquer saber. Mesmo no manejo da literatura que, dizia Hölderlin, é antes de tudo sonho e, portanto, é pura fragilidade também.
NOTA
Os textos Pamuk no espelho e Literatura e ignorância foram publicados originalmente no blog A literatura na poltrona, mantido por José Castello no site do jornal O Globo.