Ovelha perdida na noite

Mas será que a literatura realmente pode salvar?
Ilustração: Fábio Abreu
29/04/2018

Em novembro de 1919, já doente, bastante doente, Franz Kafka escreveu sua célebre Carta ao pai, durante uma temporada de descanso em Zelesy. Tinha 36 anos de idade. Morreria menos de cinco anos depois. No ano anterior, a gripe espanhola o deixara de cama por longas semanas. Agora a tuberculose se alastrava e se aproximava de sua garganta. Carta ao pai não foi, portanto, apenas um esforço tardio de aproximação com o pai, Hermann Kafka, um comerciante severo e intolerante. Foi, talvez mais que isso, uma luta para se agarrar à vida. Uma aposta firme na ideia de que a literatura pode salvar.

Mas será que a literatura realmente pode salvar? Uma edição do projeto Diálogos imprevisíveis, que realizei ao lado de meu amigo, o músico Flávio Stein, no Instituto Dom Miguel, em Curitiba, no início de março, me levou, mais uma vez, de volta aos preciosos Diários, de Kafka — que leio na edição da portuguesa Relógio D’Água, de Lisboa. Imerso em mais uma releitura da Carta ao pai, decido procurar pelas primeiras anotações feitas por Kafka logo após terminar sua carta. Não, a literatura não “resolve” nada, ele infelizmente nos diz.

Quinze dias depois de concluída a carta, Franz Kafka anota em seus Diários: “Outra vez partido em dois por esta longa, estreita, terrível fissura, que na verdade só consigo vencer quando sonho. Nunca por minha própria vontade, pelo menos na vida acordada”. Não: a carta não serviu para colar suas rachaduras interiores. Não serviu para restaurar sua alma. Talvez não tenha servido para nada, pelo menos não para ele. Sim, hoje nos serve como um intenso exercício de meditação. Mas e Kafka?

Oito dias após essa primeira anotação em seu diário, Kafka volta a escrever: “Segunda-feira, feriado, no Baumgarten (o maior parque de Praga), no restaurante, na galeria. Pesar e alegria, culpa e inocência, como duas mãos irremediavelmente enlaçadas, para as separar seria preciso cortar a carne, o sangue e os ossos”. Bem e mal, salvação e condenação, alegria e culpa, entrelaçados para sempre. Kafka se dedicou a escrever e escrever, tentar e tentar, mas não se livrará nunca desse paradoxo. E será que alguém se livra? Não: ao contrário da crença contemporânea, a literatura não é uma terapia, não é um remédio.

Ainda aflito com a leitura dessas anotações, busco algum consolo em suas notas a respeito da novela A metamorfose, que publicou em 1913. Nada encontro, a angústia persiste. Logo após colocar o ponto final em sua célebre novela, um decepcionado Kafka escreve: “Sinto-me mais inseguro do que nunca, sinto apenas a violência da vida. Estou absolutamente vazio. Sou na verdade como uma ovelha perdida na noite e na montanha, ou como uma ovelha que corre atrás daquela ovelha”.

Já durante a escrita de A metamorfose, Kafka não parecia nem um pouco animado. Em meio aos originais, em 1912, ele volta a seu diário: “A confirmada convicção de que, com minha novela, me encontro nas vergonhosas depressões que têm a arte de escrever. Só assim se pode escrever, só com essa coesão, com essa abertura total de corpo e alma”. Longe de ser uma aventura confortável, muito longe de trazer a satisfação pessoal e a alegria, a literatura esgarça e repuxa tudo o que carregamos dentro de nós. Ela nos dilacera e fere. Rasga com força nosso espírito, expõe tudo o que temos e tudo o que somos: nada escapa.

A vida glamorosa dos escritores contemporâneos, que pontificam em festivais, festas literárias e congressos, que são ouvidos, aclamados e aplaudidos, que parecem destinados a mais intensa felicidade, não passa, portanto — basta pensar em Franz Kafka — de uma contrafação. Uma grande máscara, um fingimento muito bem estudado que, de duas, uma: ou esconde a dor, ou disfarça (mal disfarça) o vazio interior que nem dor chega a ser.

Apesar de nada solucionar, de nada resolver, a literatura, ainda assim, acolhe e dirige energias que, de outra forma, se voltariam contra seu próprio autor. Há um desaguar, há uma canalização, e as palavras recolhem essa força e lhes dão um destino. Palavras ficam grudadas na alma, para o bem e para o mal. Palavras nos formam e deformam. Recorro, agora, às Conversas com Kafka, que Gustav Janouch publicou, no ano de 1968. Janouch (1908-1968) foi um jovem amigo de Kafka, que o tinha na conta de um mestre. Enquanto pôde, bebeu de suas palavras. Seu livro é uma rememoração dessas conversas que, evidentemente, não mataram sua sede.

Pensando na força das palavras, me ocorre, em particular, uma das mais belas rememorações de Janouch. Quando era menino, Kafka passava grande parte dos dias sozinho, em casa, ao lado da babá e da cozinheira. Um dia, durante uma briga doméstica, a cozinheira, desabafando, lhe disse: “Você é um ravachol”. A palavra — inspirada no nome do anarquista francês François Koenigstein, mais conhecido como “Ravachol”, célebre por seus atentados espetaculares — entrou para o uso comum, depois, como um sinônimo de “menino travesso”. Mas o pequeno Kafka nunca a ouvira, e ficou paralisado.

“A palavra atuava sobre mim como uma terrível fórmula mágica que me submetia a um estado de tensão insuportável”, rememorou ao amigo Janouch. Um dia, sufocado, enfim, perguntou ao pai o que ela significava. Sempre mal-humorado, Hermann Kafka respondeu: “É um criminoso, um assassino”. No dia seguinte à conversa com o pai, Kafka teve febre alta. Tenso, perguntou à babá: “Por que sou um criminoso?”. Entrando no quarto naquele momento, a cozinheira — a primeira a pronunciar a palavra “ravachol” — interferiu: “Quem te disse isso? Como um criminoso?”. Kafka não vacilou: “Você mesma me disse”. A cozinheira protestou, não disse aquilo, jamais diria; mas ele recordou a palavra maldita, “ravachol” e também a tradução que recebera do pai.

“Sim, ravachol, fui eu quem lhe disse, mas não tive má intenção”, a mulher, espantada, se lamentou. Mas o estrago já estava feito. Pelo resto da vida, Franz Kafka carregou a culpa de um assassino. A história relatada por Janouch me faz pensar que, sim, a literatura não salva — mas as palavras podem rasgar terríveis feridas. Seria a literatura um esforço, inútil, para controlá-las? Para não permitir que elas nos mordam e arrebentem? Que elas não fiquem cravadas para sempre em nosso peito como o pedaço de gelo, cortante como um facão, que Kafka imaginou um dia carregar?

José Castello

É escritor e jornalista. Autor do romance Ribamar, entre outros livros.

Rascunho