Os olhos da baleia

Recordação de uma infância assombrada revive ao contato com a arte do cineasta húngaro Béla Tarr
Ilustração: Thiago Thomé Marques
01/12/2025

Assisti, no último fim de semana, ao espantoso A harmonia Werckmeister, o filme que o húngaro Béla Tarr lançou no ano de 2000. Ele se baseia no romance A melancolia da resistência, que outro húngaro brilhante, o escritor László Krasznahorkai, vencedor do Nobel de Literatura 2025, publicou uma década antes. Ainda não consegui ler os relatos de Krasznahorkai. Seu Sátántangó, de 1985, único livro traduzido no Brasil, está bem aqui a meu lado. Enquanto isso, com uma mistura de paixão e cólera, assisto aos filmes de Tarr. Paixão absoluta por sua arte. Cólera diante do mundo que ela desnuda.

Meu amigo Sérgio Pantoja me apresentou ao cinema de Béla Tarr. Somos amigos de infância. Poucos homens me conhecem tão bem. Sérgio sabe me ver onde não me vejo. Desde O cavalo de Turim, o primeiro de seus filmes a que assisti, senti uma imediata conexão com o cinema de Tarr. Talvez mais que uma conexão: uma fusão. Assistindo a seus filmes assombrosos, sinto que entro em meu próprio mundo. Como se eles fossem projetados desde o meu interior. Como se Tarr me usasse como set de filmagem. Como se seus filmes fizessem parte de minha alma, ou fossem a própria alma.

Isso aconteceu, de novo, com A harmonia Werckmeister. A história de uma pequena cidade que tem sua rotina destruída pela chegada de um circo. A grande atração do circo é uma baleia morta. Uma jubarte negra. Através das câmeras sensíveis de Béla Tarr, tudo o que conseguimos divisar do monstro é um olho. Grande e morto, vindo de profundezas inacessíveis, ele desmascara a cidade que, antes pacata e isolada, agora entra em convulsão. A questão central parece ser: o que a baleia vê? Que olhar é esse que despe as ilusões da cidade e de seus cidadãos?

Eu disse que assisto aos filmes de Tarr como se eles fizessem parte de meu interior. De minha alma. Vendo A harmonia Werckmeister, experimentei, mais uma vez, essa sensação. Ele trouxe de volta uma história antiga, que vivi na infância remota e de que eu não me lembrava mais. Ou de que achava que não me lembrava mais. Através do filme de Tarr, ela retornou inteira. E, ainda agora, se projeta em meu interior. Tento aqui capturá-la com palavras. Frágeis palavras. Eu era um menino pequeno quando, no ano de 1955, um cargueiro inglês aportou no Rio de Janeiro. Trazia como troféu uma enorme jubarte morta. Capturada na costa do Marrocos, a baleia estava conservada em formol. O cadáver do monstro se tornou uma espécie de troféu assassino, que celebrava a vitória (e a imbecilidade) do homem. Carregada ao longo da costa brasileira, ela transformou o cargueiro inglês em um circo.

Minha avó materna, Iracema Guimarães, que desde muito cedo compreendeu minha propensão à fantasia e aceitou meu caos interior, tomou a decisão de me levar ao porto para uma visita à baleia. Entregou-me, antes, um lenço de linho e me avisou que carregava em sua bolsa seu melhor frasco de perfume. O odor repulsivo da baleia se derramava pelo ar e infectava todo o armazém. “Molhe o lenço no perfume e respire fundo”, minha avó me advertiu. “Se não fizer isso, você vai desmaiar.” Não desmaiei, mas o cheiro da morte me impregnou. Ainda hoje, recordando essa história, eu o sinto. Agarrei-me ao lenço úmido como a um amuleto. Além disso, sentia muito medo, porque não entendia o que minha avó me levava para ver. “Você vai entender que somos formigas”, ela deve ter me dito. Minha avó sempre dizia que não passamos de formigas. Que, diante da imensidão do mundo, somos só farelos de pão. Apreciava essas metáforas trazidas de sua cozinha. Nunca as esqueci. Eu, até hoje só uma migalha do menino perplexo que fui.

A fila era longa e cansativa. Uma mulher desmaiou. Houve uma correria, mas ninguém se afastou da jubarte morta. Era imensa e assombrosa. A imprensa explorou o evento, afirmando que a baleia capturada na costa do Marrocos era a própria Moby Dick, personagem de Melville. Na época, muita gente acreditava que Moby Dick tinha realmente existido. E agora, morta, a prova estava diante de nós. Menino pequeno, eu desconhecia Melville. Mal sabia ler — limitava-me a ouvir, aturdido, os contos de fadas que minha avó me contava. Não fiz, portanto, associação alguma. O assombro veio, límpido, de dentro de mim. Não precisei de metáforas ou da literatura, para me espantar.

Logo que pôde, minha avó me tirou dali. Ela percebeu meu aturdimento. Talvez tivesse sido uma imprudência me levar até o porto. “Agora vamos tomar um sorvete”, deve ter dito. Sorvete algum me salvaria do que eu tinha visto. E o que mais me marcou, hoje me lembro bem, não foi o cheiro nauseante da morte, ou a imensidão do monstro negro, mas seus olhos bem abertos. O que aqueles olhos viam em mim? Por quê, mesmo depois da morte, se mantinham alertas? Estaria a baleia de fato morta? A visão da jubarte rasgou em meu interior uma dúvida: quais seriam as fronteiras entre a vida e a morte? Todos os meninos são filósofos. Desde ali, como bom filósofo, passei a sonhar com mortos que se mexem, cadáveres que piscam, carcaças que respiram. De onde eu menos espero, alguém me observa. Há sempre uma baleia a me vigiar. A mesma baleia. A baleia que depois reencontrei no filme de Béla Tarr.

Esse olhar nunca me largou. É ele que descerra dentro de mim não só uma fresta para existir, mas um espaço — um “set” — para escrever. Mesmo nos piores ambientes de morte, o olho da baleia continua aberto. Em A harmonia Werckmeister, o filme de Tarr, é ele quem perfura e rompe a indiferença. Na pequena cidade húngara, reina a desgraça. É o olho da baleia que descerra alguma esperança. No meu interior, ainda hoje, como um farol longínquo, são esses olhos mortos que iluminam meu caminho. “Você está doente”, me disse outro amigo, que me conhece talvez melhor do que eu mesmo. “Tudo o que você lê, tudo o que vê, tudo o que o rodeia, você carrega para dentro de si.” Não posso desmenti-lo, mas não vejo isso como uma doença. Seria mais uma graça. Desde minha visita à baleia, alguma coisa vibra em meu interior. Não sei como, mas foi essa vibração que, meio século depois, Béla Tarr filmou. Ouso pensar.

José Castello

É escritor e jornalista. Autor do romance Ribamar, entre outros livros.

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