Os dois corpos de Raimundo Carrero

Ao sustentar sua palavra mesmo quando o corpo combalido lhe falha, Carrero se apresenta como um herói da escrita
Raimundo Carrero por Ramon Muniz
01/06/2011

No Recife, tenho a alegria de dividir uma mesa de debates com Raimundo Carrero — a primeira de que o escritor participa desde a doença que o atingiu no segundo semestre de 2010. Acompanho, com emoção, o retorno de meu amigo ao espaço público, ao lugar de mestre refinado, mas apaixonado. Observo seu esforço, pois a doença ainda o sobrecarrega com seus ásperos vestígios. E sua coragem, atributo que sempre o distinguiu, não só como homem, mas também como escritor.

Carrero nunca foi homem de meias palavras. Sua literatura, inquieta e atrevida, ronda as fronteiras do sonho, infiltra-se ali onde a imaginação, sem pose ou pudor, resvala e fere a face do real. Seus romances têm, em geral, títulos longos, que repuxam a narrativa para a capa dos livros, rompendo os protocolos editoriais e derramando-a nas mãos do leitor. Seus personagens são, quase sempre, homens e mulheres insubordinados, que não se submetem a regras e que agarram a vida com desespero, mas fé. Carrero é, ele próprio, um homem de fé, mas esta fé, em vez de abrandar a agonia que agora arrasta, como se regida por anjos embriagados, a exacerba.

Dividimos, sozinhos, uma mesa de debates, na abertura do Laboratório de Autoria Ascenso Ferreira, no centro velho do Recife (no dia 29 de abril). Os organizadores preferiram dispensar a presença de um mediador, certos de que estaríamos mais à vontade. Acertaram: um forte afeto sempre nos ligou. Mas a sombra de uma dor se interpõe entre nós. Ocorre que Carrero, mesmo tendo a saúde perfeita, ainda carrega no corpo, inscritas como uma nova e transitória lei, as seqüelas do acidente vascular que o derrubou. Expõe, sem pudor, e com a coragem de sempre, as cicatrizes da doença. Não as exibe, em busca de piedade, ou qualquer sentimento odioso. Sustenta o que é — como sempre fez com as palavras.

Ouço Carrero falar e reencontro a força sertaneja que o define. É agora uma força temperada pela tristeza, que ele não consegue (nem pretende) esconder, mas que também não o abate. Ela o modifica, mas, modificando-o, o aproxima ainda mais de si. O tema que nos propõem, Literatura e realidade, ecoa essa aproximação. Aponta para o mundo externo, para as fronteiras do social, para o outro. Mas de que real, e de que outro, Carrero poderia falar, senão daquela realidade avassaladora e daquele ser ferido que se instalou em seu corpo?

Acompanho a fala de meu amigo e percebo, de repente, que sua doença — afora todas as contingências médicas, que são reais — é um sintoma literário. A escrita de Carrero força com fúria as fronteiras da literatura, desferindo golpes duros na própria cauda (como “pedras que se consomem”). É uma escrita tensa, embora elaborada com grande sofisticação. Uma escrita que desafia a morte, não só da literatura, se vista como padrão e consagração, mas da figura do autor, quando tomado como alguém que “sabe o que faz”.

Carrero sempre manejou uma técnica refinada, que ele transmite, com entusiasmo, em suas oficinas literárias. Seus alunos andam inquietos e saudosos. Em suas mãos calejadas, a escrita se converte em um aparelho que só funciona sob condições muito especiais e difíceis de alcançar. Porém, sob a couraça da técnica, a literatura de Carrero carrega uma grande ebulição. A mesma fervura intensa que o homem Raimundo, mesmo enfraquecido, mantém.

Vejo meu amigo e penso em um toureiro que, com apuro e refinamento, dança diante de um animal furioso. Como os toureiros, ele vive seu ofício não como uma atividade intelectual, mas uma experiência de alto risco. A palavra é sua espada. A ficção é o manto com que ele se encobre, mas com que atiça a besta. Também a vida espiritual de Carrero (basta observar seus personagens) é uma luta vigorosa entre os ideais místicos e os impulsos do corpo. Com a escrita, e imitando os anjos, ele se supera e se eleva, mas o corpo sempre vence.

A literatura se torna, em conseqüência, uma segunda forma de mística. Até a doença cruel o derrubar — limito-me a repetir o que ele mesmo muitas vezes declarou — o álcool ocupava em seu cotidiano o lugar de veículo precário de transcendência. A força da embriaguez, a potência do vinho, porém, detinha-se, ou terminava, ali onde a palavra, ainda mais forte, se erguia. Veículo de transcendência, o vinho não era um fim, mas um caminho. Quando a palavra áspera e luminosa lhe vinha, a lucidez tomava as rédeas. Nossos corpos, humanos, frágeis, cansados, necessitam sempre de alguma forma de embriaguez. Diante da palavra bem dita, porém, a beleza do torpor se quebra.

Talvez seja um exagero atribuir às funções do álcool, que os homens compartilham desde a mais remota Antiguidade, um papel tão crucial. Mas em Carrero, tudo — ficção, religião, culpa, rebeldia, embriaguez — se passa sempre no corpo e ali se suporta. Agita-se em seu corpo imenso, de gestos largos e movimentos enfáticos, que a doença só temporariamente abrandou. Não é por acaso, portanto, que seja no corpo físico que a literatura, transformada em carisma e chagas, encontre seu limite e manifeste não seu esgotamento (porque Carrero continua em pleno vigor criativo, e os rascunhos esboçados de um novo romance bastam como prova), mas sua resistência.

A isso, e com grande mal-estar, devo somar, ainda, os efeitos (sempre inscritos a ferro na carne) da vida literária. Em um país em que raros escritores conseguem viver de direitos autorais, a eles cabe — se querem “viver de escrever” — ultrapassar a escrita. Oferecem-se, assim, quase sempre a contragosto, ou pelo menos com um imenso cansaço, como mercadores de si mesmos. O escritor freqüenta congressos, feiras, seminários, auditórios, mesas redondas. Voltados sobre si, como uma serpente que se enrosca e se morde, falam (ou tentam falar) do que fazem e do que são. Falar, viajar, debater, dar entrevistas, comentar, palestrar tornam-se, assim, desdobramentos invitáveis da ficção. Isso ao menos no caso dos escritores de coragem (como Carrero), que se recusam a levar uma vida dupla. Nesses casos, o escritor precisa lançar-se “fora de si”, para ter o direito de existir. Estranho preço: o preço da palavra é o silêncio ou, pelo menos, a falação — que silêncio ruidoso não deixa de ser.

Também o homem, nessas horas, se desdobra, como se tivesse dois corpos, ou fosse capaz de sustentar um segundo corpo que, a rigor, talvez não seja seu. O primeiro corpo volta-se para dentro (para o rumor das palavras), enquanto o segundo escorre para fora (para os apelos da sobrevivência). Não é fácil sustentar dois corpos e, em alguns momentos, sufocando em sua dupla condição, a alma racha. Eis a doença, que se inscreve no corpo do escritor como contrapartida cruel de sua coragem. É uma submissão dolorosa e o incomoda. Por mais que receba afeto e reconhecimento, algo lateja. De alguma coisa, que literária já não é, ele passa a sofrer.

Assim encontrei Carrero, marcado no peito pelo duplo destino da escrita. Objeto vivo — resto, sombra, carga — de uma literatura que, como dizia Tchekhov, não se contenta em decorar, confeitar, ou divertir, mas que só chega a ser se, colocando o corpo em grande risco, se submete, lançando-se no coração do real. Eis Raimundo Carrero, com seu corpo real, que agora se oferece como monumento do vínculo indestrutível entre o corpo e a escrita. Mesmo obrigado a carregar ainda por um tempo as cicatrizes da doença, mais uma vez ele se engrandece. Penso nos dois corpos de Raimundo Carrero, que continua a ser, é claro, um homem só. Há algo de heróico em sua resistência. Ao resistir e se superar, ao sustentar sua palavra mesmo quando o corpo combalido lhe falha, Carrero se apresenta como um herói da escrita.

Muito breve, com duas taças de um bom vinho, ainda vamos celebrar isso, meu querido Carrero! Enquanto essa hora não chega, mesmo separados por uma imensa distância, tento me embeber de sua coragem.

NOTA
O texto Os dois corpos de Raimundo Carrero foi publicados no blog A literatura na poltrona, mantido por José Castello, colunista do caderno Prosa & Verso, no site do jornal O Globo. A republicação no Rascunho faz parte de um acordo entre os dois veículos.

José Castello

É escritor e jornalista. Autor do romance Ribamar, entre outros livros.

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