Alunos e leitores estão sempre a me perguntar a respeito das relações e dos limites entre a ficção e a realidade. O que é real? O que é ficcional? Eles costumam me trazer, sobretudo, uma pergunta particularmente difícil: na literatura, como se trama a relação entre realidade e ficção? A resposta que sempre me vem a essa pergunta é uma afirmação de Ricardo Piglia: “A literatura é uma maneira de não se decidir entre a realidade e a ficção”. Em consequência, a literatura não está nem do lado da ficção, nem do lado da realidade, mas em um vão que se abre entre as duas. Não se pode pensar em literatura, portanto, sem incluir a ideia do abismo.
Volto a Piglia, que continua sua meditação: “Um romance é interessante quando o leitor sabe que ele é ao mesmo tempo verdadeiro e falso. Se fosse somente verdadeiro, ou falso, não produziria o mesmo efeito”. É da dúvida, portanto, e da interminável oscilação que ela impõe, que a literatura tira sua potência. Daí talvez a força da literatura em nosso tempo. Em um mundo cheio de certezas, em um mundo que se vangloria de suas verdades, em tempos arrogantes e cheios de si, a literatura nos oferece a incerteza como valor central.
Em uma entrevista antiga, Lygia Fagundes Telles descreveu a relação entre ficção e realidade como um “sistema de vasos comunicantes”. Um sistema de passagens — ou de canais — no qual trafegam fatos e fantasias. Fatos se transformando em fantasias, fantasias em fatos, ideias conscientes em inconscientes, com todos os conteúdos misturados. Como nos vasos comunicantes dos laboratórios, se a quantidade líquida diminui de um lado, diminui também do outro. Volto a Piglia: o verdadeiro e o falso estão associados — são gêmeos univitelinos — e dependem um do outro para sobreviver.
Há, portanto, uma trama — um sistema secreto — a ser enfrentado, ou simplesmente ninguém consegue ler. A primeira definição de trama que encontro no dicionário fala de um conjunto de fios passados no sentido transversal do tear. Eles se cruzam (ou passam entre) os fios da urdidura (o conjunto de fios dispostos no tear paralelamente a seu urdimento). Em outras palavras: trama e urdidura são dois sistemas que se cruzam, um sustentando o outro. Um não existe sem o outro; sem um deles, o outro não pode se manter. Para o escritor, a mesma coisa se passa entre a realidade (urdidura) e a ficção (trama). Resultado que, mais uma vez, nos dá uma bela rasteira: a realidade não existe sem a presença da ficção. Dizendo de outra maneira: a ficção é parte inerente da realidade, e não um mundo à parte e distante que flutua sobre ela.
Continuo agarrado ao dicionário: ele equipara ainda a trama ao enredo — o que significa dizer que a trama não é só aquilo que a imaginação desenrola ao longo de um texto, mas é também aquilo que a atravessa transversalmente, isto é, a realidade. Enredo vem de enredar, prender, colher na rede. De onde se pode concluir que o enredo retém alguma coisa que é o resultado desse cruzamento entre a fantasia e a realidade. Outros sinônimos para enredo são: intriga, história, assunto, fábula. Para Aristóteles — leio em uma anotação que fiz à margem de um livro —, o enredo supõe uma cadeia de conexões. Ficando fora dele, portanto, tudo o que está solto. Essa definição de enredo predomina desde a Odisseia, passando pelo Quixote, e também por escritores como Conrad, Stevenson, Flaubert, Machado e Eça.
A literatura moderna, contudo, revira essa fórmula. Desde Kafka, chegando a Pessoa, Joyce, Virginia Woolf, Clarice, ela evidencia o contrário: o enredo é mais um ponto de atração, um eixo, em torno do qual giram conteúdos que não estão diretamente associados, ou cuja associação não pode ser captada em um primeiro olhar. Já não é mais possível cobrar “coerência” de um relato. Ao contrário, o relato moderno inclui a desarmonia e a incoerência. Desde o século 20, a literatura já não é mais um tapete que o leitor lentamente desenrola, mas uma bomba que, subitamente, explode em suas mãos. É dessa herança — dessa luta — que os escritores tentam, hoje, construir a literatura do século 21.
Não respondi a pergunta de meus alunos. Não sei separar ficção e realidade. Ao contrário: quanto mais leio, mais me convenço do laço feroz que as amarra. Seja por sucessão, seja por gravitação, uma está presa à outra. Há algo muito perturbador nessa descoberta: ela não se aplica só à literatura, mas a nós que estamos “do outro lado do muro”. Em outras palavras: ela ajuda (talvez seja melhor dizer, ela “complica”, mas ao mesmo tempo enriquece) nossa sempre tímida relação com a realidade.
Nota
O texto Onde está a realidade? foi publicado originalmente no blog A literatura na poltrona, do caderno Prosa, do jornal O Globo.