Oficinas de deformação

Recebo, em minhas oficinas literárias, muitos alunos que me pedem regras, exercícios, correções, truques que os ajudem na arte de escrever
01/02/2013

Recebo, em minhas oficinas literárias, muitos alunos que me pedem regras, exercícios, correções, truques que os ajudem na arte de escrever. Estes alunos não me pedem apenas uma “formação” — pedem um “adestramento”, como o ministrado aos técnicos, aos atletas e, me perdoem, aos cães.

Acreditam esses alunos (para minha surpresa, quase sempre os mais jovens) que eu possa “exercitá-los”, como nas academias de ginástica. Como se “escrever bem” fosse o mesmo que “escrever corretamente”. Como se, para “escrever bem”, bastasse seguir modelos e fórmulas — como alguém que segue uma receita de bolo, ou lê uma bula de remédio, ou ainda o guia de instruções para o uso de um novo computador.

Não há, no entanto, como “formar” escritores. Todos, mal ou bem, aprendemos a escrever na escola, seguindo os preceitos das gramáticas e dos dicionários. Mal ou bem, todos escrevemos. A literatura não é, portanto, e ao contrário do que em geral se pensa, a “arte de escrever bem”. Esta é a arte da retórica, não da ficção.

Em vez de “formar” escritores, em minhas oficinas luto para “deformá-los”. Livrá-los do apego preguiçoso a fórmulas, clichês e lugares-comuns. Afastá-los da cópia e da repetição — ainda que se trate da imitação aplicada de grandes autores. Luto para convencê-los de que a literatura não é um ofício — algo que “se faz bem” —, mas uma viagem interior.

A literatura não é um ofício, mas um ato — é uma experiência, que cada um vive à sua maneira e por sua própria conta e risco. Em vez de procurar uma voz exterior que o alimente e guie, a tarefa do escritor é a de perseguir uma voz interior. Buscar aquelas zonas secretas que nos distinguem dos outros e fazem de cada um de nós seres singulares e inconfundíveis — isso, se vivermos a vida com coragem e se formos fiéis a nós mesmos. Se formos intransigentes na defesa de nossa própria diferença. Se tivermos a audácia de, abandonando regras, lições e tradições, mergulhar de cabeça em nossa própria intimidade.

Tudo o que uma oficina literária pode fazer — tudo o que tento fazer em minhas oficinas literárias — é ajudar o aluno a se aproximar de si mesmo. Parece óbvio, mas não é pouco! Vivemos em um mundo congestionado de modelos, de modas, de tendências. Um mundo regrado pela publicidade, pelo marketing e pelas grifes. Este mundo tende sempre à cópia e à repetição. É com grande desconfiança, portanto, que a maioria das pessoas observa o diferente. Não é fácil chegar a si e à própria voz, e para isso precisamos de ajuda.

Não de alguém que nos organize, mas de alguém que nos desorganize. Não de alguém que nos leve ao medo de errar, mas, ao contrário, que nos estimule a ser mais audaciosos e a valorizar os nossos erros. A literatura não é uma questão de “escrever bem”, mas de “errar bem”. Cada um “erra” à sua maneira, no seu estilo, no seu tom. Este “erro” não é qualquer coisa, mas algo que só com muita luta se conquista.

É algo que já está em nós, mas não conseguimos ver. Algo que se oculta e que nos escapa, mas está, todo o tempo, ali. Algo que temos, mas não sabemos que temos. No entanto, só quando entramos em contato com esse “erro”, começamos, de fato, a escrever para valer. Só quando nos “deformamos” em relação às regras e aos bons comportamentos, chegamos, de fato, a nossa voz singular. Que, enfim, merece o nome de literatura. Só assim a literatura deixa de ser uma moda para pedantes, ou um ofício para aprendizes, e se transforma em um destino.

A deformação de que falo, é bom deixar logo claro, nada tem a ver com a maldade, com a crueldade, ou com o crime. Não se trata, também, de “escrever mal”. A voz interior que cada um de nós carrega se esconde muito além de qualquer noção de bem, ou de mal. Muito além de qualquer idéia de moral, ou de imoral. Ela é algo que trazemos inscrito no espírito. É algo que nos torna diferentes de todos os outros; mas não melhores nem, ao contrário, piores.

É uma espécie de ferida que nunca cicatriza e com a qual não só devemos aprender a conviver, mas que devemos cultivar. Exige um grande esforço pessoal a chegada a essa voz — e, para isso, precisamos de alguém não que nos molde (um “professor”), mas que nos desafie (um “mestre”). Exige um grande esforço não de formação (adestramento, imitação, performance), mas de “deformação” (singularidade, particularidade, “erro”).

O escritor não é alguém que se veste com roupas suntuosas, ou da moda; é mais alguém que se despe, se desnuda, não para exibir-se (não para chocar ou constranger), mas chegar ao centro de si. Cada um de nós tem seu centro: limitado, imperfeito, “torto” — mas ele está ali. Ele não nos equilibra, ele nos desequilibra. Não nos sustenta, mas nos desestabiliza. Fazer literatura é trabalhar com esse centro, dele fazer alguma coisa, “tornar-se” o que se é.

Para isso devem servir as oficinas literárias: para desnudar e desembrutecer. Não para adornar a escrita, mas para aproximá-la da verdade — a verdade pequena e precária de cada um. Não para “escrever bem”, mas para que a escrita se transforme, de fato, em um destino.

NOTA
O texto Oficinas de deformação foi publicado no blog A literatura na poltrona, mantido por José Castello, colunista do caderno Prosa, no site do jornal O Globo. A republicação no Rascunho faz parte de um acordo entre os dois veículos.

José Castello

É escritor e jornalista. Autor do romance Ribamar, entre outros livros.

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