Nunca escondi uma mania (um vício, uma obsessão) que sustenta minha escrita. Não consigo começar a escrever — seja uma ficção, um ensaio, um artigo para o jornal, o que for — sem antes anotar no alto da página a palavra “nada”. Lembro-me do dia em que isso começou. Estava com uma gripe forte. O desânimo e a apatia me dominavam. Ainda assim, precisava entregar um texto — uma crônica — até o final daquele tarde.
Passei muitas horas diante da tela em branco de meu primeiro computador. A tela me hipnotizava. Sugava-me para seu interior, arrastava-me para seu centro ausente, esvaziava-me. Eu precisava de um chão — assim como os nadadores, que sem dispor de um trampolim, não podem dar seus saltos. Mas me faltava um chão. Lembro que pensei: “Estou perdido. Os cozinheiros, pelo menos, têm suas receitas, e os economistas, suas planilhas. Eu nada tenho”.
Foi então que me ocorreu: esse “nada” era meu único consolo, era meu único ponto de partida. Não tinha outro apoio, nada em que me amparar. Nada mesmo. Foi aí que decidi a ele me agarrar e, julgando-me um pouco tolo, escrevi a palavra “nada” no alto da página vazia. É difícil descrever o alívio que aquilo produziu em mim. De repente, eu pisava em alguma coisa. Alguma coisa — ainda que nada — me sustentava. Um nada, que nada é, ainda assim se oferecia como algo que era só meu. E um escritor, para começar, precisa desse sentimento de que só ele, e mais ninguém, possui algo, por mais insignificante ou ridículo que seja, ou não conseguirá escrever.
Logo depois, em um jato, escrevi minha crônica. De tal modo me agarrei àquela palavra mágica, “nada”, que já não me recordo que crônica escrevi. A crônica era o que menos importava. Como se um atleta olímpico, depois de um salto ornamental, declarasse: “O salto foi medíocre. Mas de que trampolim eu saltei!”. Desde então, começar meus textos com a palavra “nada” se transformou em um ritual. Algumas vezes, constrangido, eu me pego anotando-a no alto da lista de supermercado, ou da agenda semanal. Nada é meu trampolim. É meu solo. Sem nada não sou ninguém.
Relembrava, outro dia, essa experiência a um amigo, e ele recordou um trecho do Livro sobre nada, de Manoel de Barros. A parte que lhe chamou atenção não está propriamente no capítulo batizado “Livro sobre nada”, mas no anterior, “Desejar ser”.
Aparece no último poema, o 14º. Nele, sugere Manoel: “Represente que o homem é um poço escuro./ Aqui de cima não se vê nada./ Mas quando se chega ao fundo do poço já se pode ver o nada./ Perder o nada é um empobrecimento”.
Manoel nos apresenta a sutil diferença entre “ver nada” e “ver o nada”. Ver nada, nada ver, é algo que se assemelha à cegueira. Ver o nada, ao contrário, é uma iluminação: de repente, você se depara com aquilo mesmo que lhe falta. Depara e aceita. Depara e vê, porque o que lhe falta, de fato, está bem ali. “Eu fiz o nada aparecer”, escreve Manoel. Ele resume, assim, minha experiência. Com a página em branco, nada tenho. Já depois de escrever a palavra “nada” em seu alto, tenho nada. Parece a mesma coisa, mas não é. No primeiro caso, o nada me possui. No segundo, dele tomo posse. Dele parto.
Aproveito e avanço no livro de Manoel de Barros, entrando na parte propriamente denominada “Livro sobre nada”. Está cheia de versos espantosos, mas que, para mim, fazem todo o sentido. “Tem mais presença em mim o que me falta”, diz Manoel, tocando outra vez no nervo de meu impasse. É da falta, e só por causa dela, que alguma coisa se escreve. Mas cuidado: não devemos nos entregar a mentiras, ou a falsificações. Adverte Manoel: “Há muitas maneiras sérias de não dizer nada, mas só a poesia é verdadeira”.
Volta e meia alguém aponta o caráter “poético” de minha escrita. Sempre estranho, porque nunca escrevi poesia. Não sei o que as duas coisas significam. Um leitor chegou a transformar em versos — e, portanto, em um poema — um capítulo inteiro de meu romance Ribamar, e me enviou. “Você não escreve prosa, mas poesia”, ele me disse. Fiquei impressionado. Até porque essas questões de gênero nunca me importaram. Certa vez, outro leitor, bem enfezado, assim comentou algo que escrevi: “Você escreve, escreve, mas não diz nada”. Agora, junto os dois comentários e chego, surpreso, aos versos de Manoel. Eu os repito, para não esquecê-los: “Há muitas maneiras sérias de não dizer nada, mas só a poesia é verdadeira”.
Não sou poeta. Sei que Manoel de Barros é poeta. No século 20, tivemos sete grandes poetas: Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira, Vinicius de Moraes, João Cabral de Melo Neto, Jorge de Lima, Cecília Meireles e Murilo Mendes. Depois deles, vieram outros poetas de respeito: Adélia Prado, Hilda Hilst, Orides Fontela, Ferreira Gullar e o próprio Manoel. Temos grandes poetas em ação: Paulo Henriques Britto, Lucinda Persona, Nuno Ramos, Ana Martins Marques, Alberto Martins, Nelson Ascher, Antonio Cicero. É preciso não parar de repetir seus nomes. Sei onde estão os grandes poetas. Mas nada posso dizer — nada mesmo — a respeito desse poeta envergonhado que meu leitor encontra escondido em mim. Sou, desde menino, um leitor de poesia. E isso — agora inverto a palavra — para mim é tudo.
NOTA
O texto O trampolim inexistente foi publicado no blog A literatura na poltrona, mantido por José Castello, colunista do caderno Prosa & Verso, no site do jornal O Globo. A republicação no Rascunho faz parte de um acordo entre os dois veículos.