Sempre me impressiono com a figura desconfiada de Elenice Valtman, a gerente do restaurante onde costumo almoçar. Enquanto me oferece o cardápio, ela está sempre a pensar em outras coisas. Escolho um assado. “O que o senhor pediu mesmo?” Elogio a qualidade da carne. “Essas batatas são orgânicas”, comenta, distraída. O restaurante se chama Resgate, mas na verdade ele é um cárcere, abafado e estreito. Como é barato, além de pouco frequentado, é lá que termino por almoçar.
Mas não venho falar de Elenice Valtman, e sim de Virgílio, o velho gato que ela mima como um bebê. Não sei o que o poeta romano pensaria da homenagem, e nem sei se foi uma homenagem, ou um acaso. Tampouco sei dizer por que Elenice batizou sua rottweiler, a quem Virgílio evidentemente odeia, e com toda razão, de Eneida.
Há um fio poético que percorre as escolhas afetivas de Elenice, mas ela não o vê, ou finge que não vê. Em busca de alguma pista, tentei, um dia, puxar com ela o assunto da poesia, e descobri que seu poeta de cabeceira é J. G. de Araújo Jorge que, vindo do Acre para o sul, ganhou a fama de O Poeta do Povo. Hoje, se falamos de J. G., ninguém mais o conhece. É um dos poetas perdidos que compõem a galeria dos poetas famosos.
Mas preciso retomar o fio do gato Virgílio. Na verdade, o que mais me impressiona não é o gato, mas o Dr. Agamenon Pluft, o veterinário que o atende em domicílio. Esparrama o gato e sua imensa pança sobre uma das mesas do Resgate, indiferente ao olhar agoniado dos fregueses. Ausculta sua barriga, toma notas em um pequeno bloco e assim chega a fórmulas homeopáticas que, depois, repassa a Elenice Valtman. Ela sempre reclama da quantidade abusiva de remédios e também dos preços escandalosos. O doutor se cala.
Nem é o doutor Agamenon que me impressiona tanto, mas as gravatas escandalosas, bordôs, lilases, argênteas, que ele usa. Um dia, comentei com a gerente a respeito de meu incômodo. “Ele é um pederasta”, justificou Elenice. Perguntei o que ela queria dizer com isso. “Não sei o que é um pederasta, mas sei que não é boa coisa”, admitiu. E me ofereceu uma nova rodada de chope preto que, em boa hora, recusei. Caso aceitasse, o mais provável era que a denominação enigmática passasse também a me englobar.
As gravatas, o doutor afirma de boca cheia, vêm “da Milano”. Sob sua casca grossa de carniceiro, o doutor Agamenon tem sangue italiano, e sangue puro, tão autêntico quanto um Chiante. Mas a imagem não é apropriada, já que o Chiante é um vinho da Toscana, enquanto Milão é a capital da Lombardia. Deu nisso, comecei falando de Elenice Valtman, tentei chegar à homeopatia e empaquei nas proximidades de Bellagio, cidade em que João Gilberto Noll viveu por um tempo e onde escreveu um de seus livros.
Não me canso de repetir: a profissão de cronista é uma desgraça. Há uma inconstância, um tremor, uma dança que não para e que ninguém pode deter. Dizem que os cronistas vivem em estado de aventura, mas penso que é o contrário, vivem em constante desventura. O cronista tenta caminhar numa direção, aferra-se a um plano, arma-se de rigor e bússola, mas a escrita o carrega invariavelmente em direções que ele nunca escolheu. E assim é comigo também.
Quando comecei a falar de Elenice Valtman, julguei que sua figura gordurosa e pesada fosse uma boa porta de entrada de acesso ao bom caminho. Mas a busca do caminho, e não o próprio caminho, se tornou, aos poucos, meu tema. É como se você pegasse uma estrada, longa e sinuosa, para subir a montanha até Teresópolis, onde passaria o fim de semana, mas, no caminho, descobrisse que a estrada, e não Teresópolis, é seu verdadeiro destino. E ali fincasse acampamento, bem no meio fio, correndo o risco de ser atropelado, mas fascinado pela paisagem e mais ainda pela instabilidade e frescor que, em Teresópolis, você jamais iria encontrar.
Leitor compulsivo de Stanislaw Ponte Preta, meu pai dizia que cronistas são desertores — bichos de duas cores, talvez de duas cabeças, que você nunca sabe dizer em que direção caminham. Mas dos quais, apesar disso, nunca conseguimos soltar as mãos. Bicho malhado, disfarçado, talvez amaldiçoado. Meu pai falava dos tigres — e olha que ele nunca chegou a ler Borges, que só eu, em edições de bolso da Emecé, lia às escondidas. Não sei muito bem por que eu escondia Borges, e nem sei por que meu pai não o lia. Mas agora, nesse ponto a que Elenice Valtman me trouxe, acho aceitável pensar nos tigres, com suas cores entre o laranja e o marrom, bordados de luzes com que se camuflam em meio à selva. Em seu escritório, meu pai tinha uma foto de um tigre malaio, que trouxe de uma viagem a Kuala Lumpur. Olhava e dizia: “Eis um cronista”.
Já soltei a mão de Elenice Valtman e já não sei mais em que direção me movo. “Você será cronista”, meu pai vaticinava. “É um atrapalhado, nunca sabe em que direção está indo.” Ficou o vaticínio como castigo. O cronista é aquele que se diminui tanto diante da linguagem, se contrai e se esquiva, se nega a tal ponto, que só assim abre caminho para a língua. E que chega a um ponto em que já não sabe quem é.
É apenas o carregador que levou sua bagagem do carro para a recepção. O carteiro, que lhe trouxe aquele telegrama fatal, mas a quem você nem olhou a cara. O garçom — a própria Elenice, ela mesma? — que lhe oferece o cardápio e que se perfila às suas costas, para que você não o veja. Quanto mais o cronista desaparece, quanto mais ele abre caminho para que o tigre da linguagem se instale e o devore, mais cronista ele será. O que não quer dizer “melhor cronista”. Não existem “bons” ou “maus’ cronistas. Isso dizemos dos garçons, dos carregadores e dos telegrafistas. Os cronistas são todos iguais, meu pai afirmava. Nenhum deles presta, e por isso somos arrastados para sua dança maluca, que não chega a lugar nenhum. Porque não quer chegar, quer apenas dançar e nos enfurecer.
E, porque também eu, cronista miserável, não chego a lugar nenhum, tiro Elenice para dançar uma valsa, um foxtrote, um bolero, algum ritmo tão antigo quanto as palavras que aqui insisto em manejar. E que me levam a essa dança insana. E me obrigam a constatar que o tigre sou eu.