O sol que cai

Um homem branco de classe média, carregado de medos e preconceitos, ajuda um rapaz a comprar remédios, o que o faz ver que ambos estão em um mudo desgovernado
Ilustração: Mello
01/09/2021

Resolvo limpar a parte externa do vidro de uma janela. Deito-me, cheio de cuidados, sobre o parapeito. Não posso avançar muito a cabeça, ou corro o risco de cair. Movo-me lentamente, com os olhos bem fechados, para não ficar tonto. Sou dado a vertigens. Até uma notícia ruim no telejornal me cambaleia.

Ponho-me a esfregar o vidro pela parte de fora. Uso um escovão e me guio pelo tato. Parece que vai dar certo. Mas, não sei por quê, de repente abro os olhos. O mundo está de pernas para o ar. Atrás de mim, se erguem os andares inferiores e, logo depois deles, a rua. À minha frente, se abre um céu muito azul. Que se alonga, se afunila. Estou diante do Cosmo.

Não sei de onde tiro sangue frio — que quase nunca tenho — e encaro o infinito. O abismo cósmico. Outro dia, no Instagram, esbarrei com dois gráficos do sistema solar. No primeiro, a imagem clássica em que todos acreditamos, o sol está preso, como um botão, no centro da roupa sideral. Em torno dele, como cães amestrados, os planetas giram.

O segundo gráfico, porém, mostra um sol que despenca pelo Cosmo. Girando em torno dele, tortos e trêmulos, os planetas mal conseguem acompanhá-lo. O sol viaja a 239 km/s rumo às bordas do universo. Na verdade, ele não viaja, ele despenca. Toda a estabilidade a que nos acostumamos, mesmo quando olhamos as estrelas, é uma grande mentira. Não há firmeza, nem segurança alguma em nossa viagem pelo espaço.

A imagem de um sol que rola em um grande abismo me gela. Agarro-me à borda da janela e, medindo os centímetros, volto para dentro. Desisto da faxina e saio para caminhar pelo bairro. Busco alguma placidez. Alguma estabilidade. Subindo a Rua dos Janeleiros, verifico, aliviado, que, apesar do sol que despenca, as casas não mudaram de lugar. As árvores ocupam as mesmas posições. Os postes, as placas. Tudo permanece imóvel.

A visão da rua, em que as coisas não se mexem, me alivia. Meu velho coração desacelera. Constato, então, que, embora me considere um homem progressista, sou, na verdade, um conservador. Às mudanças bruscas, às quedas imprevistas, aos astros que se agitam, eu prefiro a imobilidade. Prefiro as estátuas, sobre seus pedestais.

Ando mais três ou quatro quadras. Logo, o tédio. Como pode me aborrecer uma paisagem que me acalma? Não sou mais um rapazola que busca noites elétricas. Nunca admirei os executivos, divididos entre agendas e relógios. A monotonia devia me serenar, mas não é isso que acontece.

Tenho medo dos abismos, nunca ousei — nem para agradar a meus netos — viajar em uma montanha-russa. Mas o chão duro, as pedras fixas das calçadas, o asfalto negro, também me afligem.

Lembro, então, que preciso comprar um remédio. A duas quadras dali, há uma drogaria. Entro, peço o medicamento, e volto à porta da loja para pagar. É nesse momento que um rapaz muito magro, mas alto e largo, me agarra pelo braço. Sou um idiota da classe média: meus preconceitos logo entram em ação. Deve ser um assalto. Ele vai me esfaquear. Talvez seja um sequestro.

O rapaz grita em uma língua incompreensível. Entre seus berros, consigo ouvir: “Ninguém me ajuda”. Leva uma pequena caixa de papelão com chicletes, que deve vender nos sinaleiros. “Ninguém me ajuda, ninguém”, ele insiste. Não sei como, afasto meu medo grotesco e consigo dizer: “Afinal, o que está acontecendo”? Ele se aquieta. Do bolso, tira um papel branco, que me entrega. Eu o examino: é uma receita médica.

“Minhas hemorroidas estão assando. Eu não consigo mais sentar”, ele diz. “Preciso desses remédios, mas ninguém me ajuda”. Peço que se acalme — mas digo isso para o rapaz, ou digo para mim mesmo? Meus temores infundados, meu horror de homem branco e limpinho, ainda me atormentam. Meu medo boçal. Minha estúpida aversão.

Mesmo trêmulo, consigo dizer: “Vá até o balcão e pegue os remédios. Eu pago”. Na lista, consigo identificar um anti-inflamatório clássico, usado para hemorroidas. Não, ele não está blefando. Ele não está fora de si, embora esteja desesperado. Quem despenca no abismo da dúvida e da bestialidade sou eu.

O rapaz volta com os remédios. Entro na fila para pagar. Agora em voz mais suave, ele me diz: “Vou lhe pedir mais uma coisa”. Penso que pedirá outro remédio, ou quem sabe algum trocado, mas não é isso. Estou sempre pensando coisas que não existem. As ideias me oprimem. “Preciso que o senhor me dê a nota fiscal”, ele diz.

Mais uma vez, meus preconceitos se ativam. Vai revender os remédios. Deve ser um golpe. Vai roubar meu cartão de crédito e fugir. Talvez me esmurre antes. “Por que você precisa da nota”? — eu consigo perguntar. Ele me explica que, nos sinais em que vende chicletes, está exposto à vigilância da polícia. Já aconteceu antes: se o veem com medicamentos, argumentando que ele não tem a nota para provar que os comprou, os policiais os apreendem. “Preciso provar que paguei, preciso prova que são meus. Preciso provar que não roubei” — grita.

Peço notas separadas. Eu lhe dou a nota. Por instantes, julgo que ele se prepara para se ajoelhar e me beijar os pés. Sou um homem ridículo: ele se abaixou só para pegar um chiclete que caiu no chão. Não é só o sol que despenca: os chicletes também. Nem me agradece — porque não tem forças. Ou porque, na verdade, eu não mereço isso.

Só agora, um homem engravatado, que talvez seja o gerente da loja, vem me perguntar: “O senhor precisa de ajuda?” É tão evidente que quem precisa de ajuda é o rapaz, e não eu. Como esse calhorda não consegue ver isso? “O senhor é um homem bom”, a moça do caixa balbucia. Faço cara feia: odeio ser bom. Não, não sou bom. Agi por impulso, tomado mais pelo medo do que pela lucidez. Ainda bem que fiz o que fiz.

Irritado com os elogios, saio da drogaria às pressas. Esqueço o remédio que comprei sobre o balcão. Só penso no rapaz. Um abismo, uma garganta medonha, nos separa. Meus receios, minha tremedeira, provam isso. Meu gesto, que julgaram nobre, não o ajudou em nada. Agora mesmo deve estar de volta ao sinal, tentando vender chicletes. Nada mudou.

Não cairei na mentira da consciência limpa. Não sou um homem de bem. Com muito esforço, consigo ser humano em um mundo desgovernado, que gira em torno de uma estrela que despenca.

José Castello

É escritor e jornalista. Autor do romance Ribamar, entre outros livros.

Rascunho