O segundo mundo

Para Manoel de Barros, o nada era o próprio objeto da poesia
Ilustração: Bruno Schier
27/02/2019

Uma sentença resume a estratégia poética de Manoel de Barros (1916-2014): “Há várias maneiras sérias de não dizer nada, mas só a poesia é verdadeira”. Para Manoel, o nada era o próprio objeto da poesia. Nenhuma relação direta com o mundo, com a natureza, ou com o pensamento teórico: o poeta é aquele que vagueia no vazio e que leva uma vida sem rumo. Para ele, a poesia “acontece”, ou “vem”. Por isso só lhe restava uma estética: a da espera. “Ficar à toa é ficar à disposição da poesia”, definiu. Agindo assim, o poeta se contrapõe aos objetos fixos, ao pragmatismo, aos resultados e aos índices que controlam o mundo contemporâneo, em que tudo é medida e tudo deve ter um valor. Para Manoel, ao contrário, o poeta é um vagabundo profissional. “Poesia é a virtude do inútil”.

Manoel — está em Só dez por cento é mentira, magnífico documentário sobre o poeta e sua obra, dirigido por Pedro Cezar, que acabo, sempre emocionado, de rever — achava que não escrevia em português, mas em um “idioleto chamado manuelês”. Assim o definia: “Trata-se da língua dos bocós e dos idiotas”. De fato, cada poeta, cada grande escritor, inventa sua própria língua. Importante estudiosa da obra de Clarice Lispector, por exemplo, a teórica canadense Claire Varin afirma que Clarice “não escreve em português, mas em Lispector”. Por essa mesma lógica, Guimarães Rosa escreveria em “Rosa”, José Saramago em “Saramago” e assim por diante. Em outras palavras: cada escritor, cada poeta, inventa e maneja sua própria língua. Cada poeta é autor de si mesmo.

Manoel vivia trancado em si. Foi um homem que se bastava. Dizia: “Dentro de mim não saio nem para pescar”. Não se deve pensar, no entanto, que praticava uma poesia do Eu, vaidoso e presunçoso. A não ser que por Eu se entenda — como parece que deve ser mesmo — um território da pura imaginação, uma máscara falsa, e não o terreno do egoísmo e do narcisismo. “O ser biológico Manoel é totalmente sem graça”, ele afirmava. “Não sou biografável”, disse também. Fazer uma biografia de Manoel de Barros parece ser, de fato, uma missão impossível. “Poesia a gente acha”, ele disse. É algo que se passa dentro de cada um, mas fora do controle que temos sobre nós mesmos. Logo, não há inspiração, e muito menos esforço intelectual: a poesia, para ele, era o trabalho do ócio. Desse modo, em uma sociedade que privilegia a produção, as vitórias e os rendimentos, a poesia se torna ainda mais transgressora.

A poesia, para ele, era puro “desenho verbal”. Pois com ela, você consegue colocar um canto, ou um gorjeio, dentro do leitor. A poesia, em vez de subtrair algo do mundo, lhe acrescenta alguma coisa. “O mundo pede socorro ao homem e à poesia para ser mais do que é.” Que não se pense, porém, em nada de espetacular, ou de fabuloso. Nenhuma mágica, nenhum assombro, nada parecido. Contra a poesia grandiloquente e espetaculosa, Manoel escrevia trabalhando o pequeno e o ínfimo. Escrever poesia era, para ele, a busca das pequenas coisas. A busca do que interfere e alarga a percepção do leitor. Os dejetos, os restos, o lixo, o inútil, as sobras, as pequenas coisas — os “inutensílios”, como ele definiu um dia — sempre foram a matéria de sua escrita. Por isso ele foi um poeta que vivia debruçado sobre o chão.

Manoel dizia que trabalhava com memórias — mas não com “memórias reais” (e isso existe?), e sim com “memórias inventadas”. “90% é invenção e só 10% é mentira”, definiu. Quando as pessoas se surpreendiam com sua definição, tentava explicar: “Tudo o que não invento é falso”. Para ele, só existia a invenção, e nada mais. “A poesia nasce do nada: você tem que inventar.” Grandes invenções? Inventos inacreditáveis? Truques fabulosos? Nada disso. Ao contrário, tratava-se, sempre, de inventar o menor. Era através do menor que Manoel aumentava e alargava o mundo. Se alguns achavam suas teses estranhas, e em consequência, se o achavam um homem esquisito, ele explicava, muito sereno: “Fiquei encantado. É para isso que eu presto”.

Tentando diagnosticar a si mesmo, Manoel dizia ter nascido com uma “disfunção lírica”. Considerava-se um obsessivo, um homem sem senso prático, que não sabia fazer mais nada além de escrever versos. “Eu acho isso sinceramente uma doença, uma disfunção cerebral”, dizia, muito tranquilo. Talvez fosse um vidente — “o que transvê”, ou vê através das coisas. E a ideia do vidente explicaria, em parte, sua “doença”. O vidente, na verdade, não quer explicar nada. “Eu não quero dar explicações, eu quero dar encantamento”. Para ele, a poesia — como a música instrumental — não quer dizer coisa alguma. Não quer dizer nada. A música, depois de ouvida, desaparece. Também a poesia: “Você olha. Mas deixa para trás. É só para você ver”. E nada além.

Insistia, sempre, que sua relação com o mundo era indireta, torta e mal alinhavada. “Não sou poeta da paisagem, mas da linguagem”, cansou de dizer. Não se referia, porém, a uma linguagem perfeita, “bem falada”, sofisticada. Não pensava na linguagem dos acadêmicos, ou na retórica. Ao contrário, quando falava de sua escrita, pensava, ato contínuo, na linguagem das crianças. Explicava assim esse paralelo: “A criança erra na gramática, mas acerta na poesia”. A criança, na verdade, está sempre em dissonância com o mundo e com a língua. Balbucia, tateia, gagueja, arrisca-se, mas não consegue chegar à norma. “Poeta é o sujeito com mania de comparecer aos próprios desencontros”, comparava. O poeta foge do lugar-comum, porque seu desejo é transfigurar as coisas.

Para Manoel, a palavra poética inventa, constrói, funda. Ela não existe para traduzir, refletir ou explicar o mundo. Sua relação com o mundo, ao contrário, é de desinteresse, quase apatia. É transversal, como alguém que olha de banda, e não de modo frontal. A palavra poética — como dizia outro grande poeta, João Cabral de Melo Neto — “dá a ver” outro mundo. Um mundo além do mundo. Um mundo que só existe nos versos e na mente torta dos poetas. O poeta vive à disposição deste segundo mundo, à espera, relaxadamente, no puro ócio, até que ele, enfim, se torne verso.

José Castello

É escritor e jornalista. Autor do romance Ribamar, entre outros livros.

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