O que já era não é mais

Uma frase dita por um vendedor de mate na praia desconcerta o cronista, que sente como se facas o rasgassem e atravessassem seu presente
Ilustração: Joana Velozo
01/01/2022

Caminho pela beira do mar. As ondas cobrem meus pés, mas não aliviam o calor. Copacabana ferve. Avisto um vendedor de mate. Ele acaba de atender a um casal e, distraído, segue seu caminho. Ainda ouço quando, voltando a cabeça de repente, ele diz, como que em uma despedida: “O que já era não é mais”.

Sereno, sorrindo, o homem volta a olhar para a frente e se afasta. A frase me paralisa e, com isso, a distância entre nós aumenta. Desisto do mate. Volta e meia, frases alheias me golpeiam. São dardos, talvez facas, atravessam meu presente e o rasgam. Essas frases grudam. A frase do vendedor, dita em um tom entre o deboche e a tristeza, me sangra.

Sento-me diante do mar, esquecido do calor e da sede, e me ponho a pensar. De que falava o vendedor? É um homem de meia idade, com a pele vermelha e uma disposição de menino. Quanto pesa o galão de mate que ele carrega? Sei que um botijão de gás pesa 25 quilos. Parece que um galão cheio de mate pesa o dobro. O mate pode já estar no fim. Ainda assim, de onde o homem tira tanto entusiasmo?

Volto à frase que ele me deixou. Talvez fale da juventude que se foi. De um casamento fracassado. De uma vida anterior em um trabalho mais leve. De todo modo, fala do presente — do que não é mais. Tendemos a acreditar que só o passado nos foge. Difícil é aceitar que o presente nos escapa também. Ocorre-me, contudo, que só do que não é mais, ou do que dele sobra, dos restos que deixou, nós podemos viver.

Levanto-me. Preciso reagir. Resolvo seguir as pegadas do homem na areia, talvez eu ainda o alcance. Parece tarde demais. Vivo, eu também, a experiência do que já passou. Fico ali, de pé, observando a areia branca, metido no buraco que o tempo cava. Preso no vão do que não é mais. “O senhor está se sentindo bem”? — um rapaz se aproxima e me pergunta. Sou sincero, por que mentir? “Não, não estou bem.” Mas acrescento: “Ainda assim, você não pode fazer nada”. O rapaz me encara com espanto. Mostra preocupação. Insiste: “O senhor tem certeza?” Como insisto que sim, mesmo desconfiado, ele se vai.

Diante do “não é mais”, nada podemos fazer. Ou ainda podemos? Pensando ao contrário: tudo o que podemos fazer diante do não é mais é partir de uma ausência. Não importa saber ou interrogar o que já era. Se já era, não interessa mais. É o que penso, um pouco trêmulo apesar do calor, e confuso, bastante confuso. Preciso, sim, de um copo de mate. E já.

Avanço alguns passos em direção ao Leme. Não era nessa direção que eu ia, mas para lá o autor da frase maldita me leva. Não sigo mais o homem, que não encontrarei, eu sigo sua frase. Não posso deixar que me escape. Alguns metros à frente, no entanto, eu avisto o vendedor. Serve a uma senhora muito gorda e suas crianças. A avó e os netos, talvez. Dá gargalhadas, sorri, continua feliz. O que “já não é mais”, entendo agora, lhe dá esperanças. Da ausência, ele tira vida.

Resolvo me aproximar. Peço um copo de mate. Outro. Dou goles fartos. Depois, satisfeito, ainda faço tempo. Não sei o que dizer, mas estou ali para dizer. O homem, que é bondoso, me ajuda: “O senhor parece aflito. A praia não relaxa?” Digo, então, que também eu perdi muitas coisas. Tantas coisas, nem sei mais. Quando nelas penso, vejo só um borrão, ou talvez uma galáxia. Uma vastidão que me engole. Por fim, confesso: “Ouvi o que você disse ainda agora para aquele casal. Fiquei impressionado”. Não parece me entender. Esclareço: “Aquela coisa de que o que já era não é mais”.

O homem ri. Ri muito. “O senhor tem uma ótima memória. Nem eu mesmo me lembro do que disse para aqueles dois.” Dá mais algumas gargalhadas, feliz. Conclui: “Se eu disse isso, já não importa. Já não é mais também”. Acomoda o galão de mate na areia, mostra que está disposto a conversar. Tranquilo, espera que eu fale. Como nada consigo dizer, volta a me ajudar: “Talvez o senhor precise de férias”. Pensa um pouco e completa: “A idade pesa. Pesa mais do que um galão de mate”.

Pergunta o que faço. Do que vivo. Diz que tenho cara de médico. Digo que não, que não sou médico, digo que escrevo. “Então é um escritor”, completa. “São duas coisas diferentes”, eu o corrijo. “Quem escreve nem sempre é escritor, embora pense ser.” Agora ele dá uma gargalhada longa. O riso atenua sua perplexidade. “O senhor deve ser daqueles que se impressionam com frases.” Aconselha-me, então, a não levar as palavras tão a sério. Aprendeu isso no tempo em que trabalhou como caixa de um supermercado. Foi difícil, muito difícil. “Diziam tantas coisas”, ele recorda. “Falavam tanto.”

Na época, sofria muito com as palavras e reprovava a si mesmo. Castigava-se. De nada adiantou, foi demitido. Se levamos as palavras muito a sério, elas nos machucam, me diz. Cansado de tanto falatório e acusações, decidiu sobreviver como vendedor de mate na areia. Caminhando na praia, entendeu melhor que tudo passa, tudo fica para trás, nada importa. “Meu avô me dizia que, mais importante que o sol, é o vento”, ele recorda. “O vento que a tudo carrega e a tudo limpa.”

Seu pai, que também vende biscoitos na praia, seguindo a sentença do avô, lhe diz que o vento é o bafo de deus. Não sabe se acredita em deus, mas acredita no vento. Acredita em seu bafo, que carrega os grãos de areia e apaga o presente no mesmo momento em que ele acontece. “O vento é uma borracha. Ele empurra o presente para o passado.” Pensa um pouco mais e completa: “O presente é uma borracha”.

De repente, o homem se despede com um sorriso manso. Não me conhece. Não tem a menor ideia de quem sou. Ainda assim, se entrega. E não teme. Sobretudo: não teme porque sabe que tudo se desfaz, mesmo o pior. Fico pensando nesse homem da areia, um sábio que carrega seu galão sob o sol e é feliz com isso.

Sempre vi os vendedores de praia como se fossem uma pessoa só. O mesmo galão, o mesmo chapéu, o mesmo homem. Agora ele me ensina: cada um deles é uma pessoa. Só agora me dou conta de que esqueci de perguntar seu nome. Apesar de tudo, eu ainda o vejo como um uniforme, e não um homem. Tenho muito a aprender.

José Castello

É escritor e jornalista. Autor do romance Ribamar, entre outros livros.

Rascunho