Folheando um livro sobre o Romantismo, deparo-me com “O poeta pobre”, óleo sobre tela do pintor alemão Carl Spitzweg (1808-1885). Imediatamente, como se uma mão invisível me agarrasse, eu me detenho: simplesmente não posso avançar mais. Por quê? O que me segura? Procuro a resposta na própria tela. Onde mais poderia estar? Ela mostra um velho poeta em um sótão miserável que lhe serve de quarto. Um guarda-chuva aberto junto ao teto encobre uma rachadura e o protege da tempestade. Velhos livros, imensos como cães de guarda, se espalham em torno dele pelo chão. Com uma pena, que aperta entre os dentes em uma mistura de fraqueza e fúria, o poeta, mesmo deitado e tremendo de frio, continua a escrever.
Mas eis que encontro, enfim, o que me impede de avançar. O fogão tinha se apagado e, para aquecer-se um pouco, o poeta nele queima parte dos poemas que acabou de escrever. Sim, ele imola sua arte para não morrer de frio. A poesia o aquece, a poesia o mantém vivo. Ela é o seu sangue. Ela o salva. Objetos dispersos pelo chão, um móvel de canto, uma garrafa e uma bacia completam o cenário de pobreza. Indiferente, o poeta permanece muito concentrado em seus escritos. Escreve não para se exibir — ou enriquecer ou se consagrar —, mas para se salvar.
Surge em minha mente, em contraste, a imagem das galerias urbanas, em que quadros de pintores célebres são negociados como formas de investimento. Ou para adornar salões requintados, ou ainda — é verdade — para corresponder à paixão de algum comprador solitário. A arte como negócio, como objeto de status, ou como gozo. Em nenhum dos três casos, ela se relaciona com a sobrevivência. Ainda que esses aspectos, de alguma forma, sempre se infiltrem na arte de hoje, mesmo na melhor delas nada sustentam se não existe a presença do fogo. E o que interessa é este fogo.
Penso em Gaston Bachelard, tão esquecido. Penso, logo depois, nas mega livrarias, em que os livros de poesia são cada vez mais largados pelos cantos. Há poucos dias, visitei uma delas, no centro de Curitiba. Percorri as estantes — de romances estrangeiros e brasileiros, de filosofia, dicionários, auto-ajuda, culinária, livros de viagens. E a poesia? Não consegui encontrá-la. Já tinha na mente a tela de Spitzweg, e logo entrevi o poeta pobre sob o vão da escada que leva ao setor escolar, respirando com dificuldade, escrevendo seus poemas não para lucrar com eles, ou para deles gozar, mas para sobreviver. Para queimá-los dentro de si, como alimentos.
Inevitável lembrar de Franz Kafka que, antes de morrer, pediu ao amigo Max Brod que queimasse todos os seus originais. Não era, no caso de Kafka, um pedido de sobrevivência, mas de desistência. Ainda assim, nesse pedido o fogo permanece como imagem central. O fogo como destino da escrita. Trata-se de uma imagem eloqüente para o leitor ideal. Ideal, ou sentimental — como prefiro? O leitor sentimental “queima” junto com o livro que lê. As palavras formam labaredas. As histórias, devaneios, pensamentos, metáforas sopram seu alimento. Elas o aquecem. De novo: elas são sua energia. São a sua vida.
O escritor (o poeta) também queima enquanto escreve. Nesse sentido, não se pode atribuir o gesto do óleo pintado por Spitzweg só à pobreza extrema, embora ela seja evidente. Há algo na tela que ultrapassa as condições materiais — melhor ainda: que é uma resposta às demandas materiais. Queimar, na pobreza ou na opulência, é escrever. Não são só os manuscritos que ardem: o escritor também. Nesse sentido, o guarda-chuva que protege o poeta no óleo de Carl Spitzweg é uma arma com a qual ele se defende das interferências externas, protegendo, assim, o fogo de sua liberdade. Parece meio ridículo que um poeta fale, hoje, em liberdade. Parece estúpido. E, no entanto, ela permanece no centro de sua escrita.
Muito útil pensar na tela de Spitzweg nos dias de hoje. Ela deveria estar exposta à entrada de todas as livrarias das grandes avenidas ou dos shoppings. Ilude-se quem acredita que ali entra para comprar, para presentear, para colecionar, para se divertir. Cada vez sinto mais repugnância pela idéia da literatura como status ou como diversão. Livros não são sagrados — vejam os meus, que rabisco sem piedade alguma. Contudo, no mundo em que vivemos, cada vez mais a idéia da literatura como “jóia” (valor) parece mais “razoável”. Quanto vale um best-seller? Quantos milhões de exemplares vendeu um livro? É o que se deseja saber — e mais nada.
A literatura, porém, não garante nada a ninguém: nem saber, nem autoridade, nem mestria. Ela não diverte, mas nos adverte. A advertência que nos faz é não só a respeito da realidade que nos cabe viver, mas do lugar que nela lutamos para ocupar. Não é fácil viver como o poeta pobre de Spitzweg e não faço aqui a apologia da pobreza. Mas sem alguma miséria interior, algum vazio, algum deserto, ninguém escreve para valer. A pobreza está na origem da criação literária — ou não faria sentido algum escrever.
NOTA
O texto O poeta e o fogo foi publicado no blog A literatura na poltrona, mantido por José Castello, colunista do caderno Prosa, no site do jornal O Globo. A republicação no Rascunho faz parte de um acordo entre os dois veículos.