O porteiro vem me entregar a conta de luz, o boleto do condomínio e uma carta. Em letras à mão, meu nome e endereço tomam quase todo o espaço frontal do envelope. Hoje em dia, ninguém mais escreve cartas, ainda mais à mão. Busco o remetente, que se assina R. S. — agora em letras de forma. Seu endereço está redigido no verso: Beco do Américo, número 117, fundos, Rio.
Abro o envelope e encontro um cartão em branco, completamente branco. Nada está escrito. Verso e avesso reluzem em minha mão com um branco amarelado, que lembra a borra do café. Fuço mais um pouco o envelope e nada encontro. Só posso entender que aquele silêncio em branco tem a intenção de me intrigar. De me desafiar.
Sou muito curioso — meu leitor já sabe disso. Na juventude, dois mestres atiçaram em mim a bisbilhotice e o interesse pelo mistério. O primeiro, João Rath, foi meu editor-chefe no Diário de Notícias. Levava-me para longos passeios a pé pelo centro do Rio e nunca dizia aonde pretendia chegar. “Vamos andando, um dia chegaremos”, me assegurava. Nunca chegamos a lugar algum, só andávamos, e andávamos, e aquela ronda embaraçosa, sem sentido, era a verdadeira descoberta.
Meu segundo mestre, o escritor João Antônio, sempre me alertava que eu não devia acreditar na realidade. “A realidade é uma estampa”, repetia. “Existem coisas assombrosas atrás dela. Mas quase nunca conseguimos perfurá-la”. João repetia e repetia a frase infernal, de modo que, aos poucos, me convenci de que o mais importante raramente se vê. E, no entanto, nunca devemos deixar de procurar o que não se vê.
João Rath injetou em meu espírito o vício da procura. João Antônio, o vício da desconfiança. Os dois me ressurgem no momento em que abro a carta de R. S. Preciso decifrar o grande silêncio branco que tenho nas mãos. Só me resta um caminho: pegar um ônibus, chegar ao número 117 do Beco do Américo e ir até os fundos. Em memória aos meus dois mestres, é o que faço.
Salto do ônibus na rua Uranos e levo bem uma meia-hora até encontrar o beco. No número 117, está uma velha casa de esquina, com a fachada coberta de lajotas e um jardim descuidado. Portas e janelas estão fechadas. Com trancas e ferrolhos, percebo. Preciso de um tempo para chegar ao estreito portão lateral. Não há campainha. Bato palmas e ninguém aparece. É tudo triste e desprezível, a começar por mim, que busco um tesouro e encontro o vazio.
Forço o portão, está aberto. Sou cronista — preciso sempre me lembrar disso, desse destino, dessa sina. Não devo ter medo de forçar a realidade, de remexer em seu fundo e até de alterá-la. De perfurá-la, ainda que esse seja um trabalho doloroso, como me dizia João Antônio. Devo, antes de tudo, avançar e avançar, como João Rath fazia, sem desejar encontrar coisa alguma. Devo, devo — tenho tantas dívidas com meus dois grandes mestres. É hora de começar a pagá-las. E começo a fazer isso em Olaria.
Avanço e chego a um corredor ainda mais estreito que o portão, as paredes cheias de goteiras, um cheiro forte de esgoto. Avanço — como Rath me ensinou. Duvido, como pregava João. Parece que o corredor leva a um pátio dos fundos, e nos fundos desse pátio dos fundos há uma segunda casa, cheia de portas. Muitas portas e nenhuma janela. Como as portas dos reservados de um sanitário. Não consigo imaginar o que possam ser.
Também não há ninguém no pátio. Há um gato em cima do muro, e mais nada. Uma das portas se abre e surge uma mulher. Pergunta o que quero. “Gostaria de falar com R. S.” — digo. Ela se espanta, e depois diz: “Será que o senhor se refere ao Rodovaldo?”. Não sabe qual é o sobrenome de Rodovaldo, mas pode ser Silva, ou Santos, o que explicaria o S. Talvez seja ele mesmo.
“O que o senhor quer com ele?” Explico que é o contrário, não sou eu quem quero alguma coisa com ele; ele, sim, quer algo comigo, pois me escreveu uma carta. “E o que diz a carta?” Encabulado, como se fosse eu o autor, digo que nada, que a carta está em branco. Pergunta por que fui até Olaria para debochar dela. “Esse Rodovaldo, como o encontro?” — insisto. Faz uma expressão de dor e, em voz baixa, revela: “Ele faleceu. Há três semanas. Morava aqui nos fundos”.
Sinto-me desarmado. Por quê, antes de morrer, o falecido me enviou a carta? “Ele não sabia que ia morrer, foi um infarto.” Lamento muito, mas, seguindo os passos de João Rath, devo continuar a procurar. Pergunto de que ele vivia. Trabalhava com a reforma de cadeiras de treliça. “Ganhava pouco, hoje ninguém mais reforma móveis rústicos.” Ora, diabos. O que um reformador de cadeiras, morador de Olaria, poderia querer comigo?
Pergunto por que tantas portas, o que elas escondem, para que servem. A mulher explica que são armários, funcionam como depósitos. “Posso abrir uma delas?” — pergunto, nem sei por quê. “Melhor não. Está tudo uma bagunça e existem ratos.” Pergunto ainda onde Rodovaldo dormia. “Em qualquer uma dessas portas, no armário que estiver mais limpo.” Volta-me a frase de João Antônio: “A realidade é uma estampa”. Aquelas portas são estampas. O próprio Rodovaldo, o falecido, talvez fosse uma estampa.
Agradeço e me despeço. “Só isso?” — a mulher pergunta, decepcionada. O que mais eu poderia querer? “Acho que já encontrei o que procurava”, minto, e lhe dou as costas. Caminho pelo corredor estreito de volta à entrada. O Beco do Américo também é estreito, e é esburacado. Preciso descobrir onde fica o ponto de ônibus. “O senhor segue em frente e vira à direita, é logo depois do bar do Rodovaldo.” Mas Rodovaldo, o falecido, que vivia de consertar cadeiras de treliça, tinha um bar?
Caminho, vejo o bar, entro. Sento-me perto do caixa, um velho de bigodes e boné surrado. Um rapaz se aproxima do balcão, pede um café e comenta: “Triste a morte do Rodovaldo”. O velho: “Vai ver que já sentia dores no peito, mas, como era mudo, nunca reclamava”. Começo a entender o silêncio branco do Rodovaldo. Um silêncio triste e amordaçado. Um silêncio inviolável como uma das estampas de João Antônio. Como em minhas caminhadas com João Rath, não cheguei a lugar nenhum. Ainda assim, é uma experiência de que nunca me esquecerei.