O menino do fio

O encontro com um pequeno filósofo na rua traz muitas inquietações e dúvidas
Ilustração: Carina Santos
01/10/2022

O menino se aproxima e me pergunta: “O senhor consegue ver o fio?”. Olho para o alto. Pássaros azuis atravessam o céu do amanhecer. Não há fio algum. “Não sei do que você está falando, garoto.” Uma névoa rala o envolve. Ainda não acordei direito — será só uma ilusão? O menino estica o braço ainda mais e diz: “Como o senhor não vê o fio, se eu o vejo?”.

Talvez se refira ao cordão de alguma pipa — mas eu não vejo pipa alguma. A alguma tira de barbante que o vento da manhã arrasta. Penso nos fios da iluminação pública, mas não consigo vê-los. Começo a me irritar. Estou apressado, tenho hora com um livreiro. Por que parei para ouvi-lo?

Antes de seguir, algo — talvez a ternura — me leva a perguntar ainda uma vez: “De que fio afinal você está falando?”. O menino tem uma cara de velho, enrugada e seca. Sobre a boca, um buço fino, que sugere a adolescência. É baixote, será um anão? Seu silêncio me incomoda. “Vamos, diga logo, eu estou atrasado.” Só então ele explica melhor: “Será que o senhor não vê o fio que liga todas as coisas?”.

Além de irritante, o garoto é um místico. Sim, um menino bizarro, que me fala de coisas que não existem. E eu ainda perco tempo com ele. Engrosso a voz: “Ora, vamos, pare com isso”. Só então vejo as lágrimas que escorrem em suas bochechas. Só aí me dou conta de que, dentro daquele garoto mirrado e daquela pergunta sem nexo, há alguém que sofre. Talvez o fio seja o sofrimento.

“Vamos tomar um café”, eu decido. “Há quanto tempo você está sem comer?” Já li, em algum lugar, que a fome extrema pode causar delírios. O garoto delira, eu decido. Que não seja de fome, mas de alguma dor feroz, de alguma miséria. “Quer comer uma fatia de bolo?”

Estou no Mato Grosso para fazer uma entrevista com Manoel de Barros. Tenho hora marcada com um livreiro, o senhor Cunha, que ficou de me passar edições raras de seus livros. Mas perco tempo com o garoto. Não tanto com o garoto, mas com a pergunta que ele esfrega em minha cara.

Enquanto mastiga seu bolo, o menino insiste: “O senhor não acredita em mim. O senhor não acredita em nada?”. É um filósofo. Na entrada da adolescência, meninos se assemelham a filósofos, embora ninguém dê importância ao que eles dizem. Depois, o sexo chega com toda a força e ocupa suas mentes. Então, a filosofia se esvai e fica a carne.

O garoto que come o bolo está na fronteira entre os sonhos da infância e a crueza da puberdade. Nessa travessia, os pensamentos se agitam. Filósofos são homens em combustão, suas mentes pegam fogo. Meninos são homens que queimam. São filósofos.

“Ainda não entendi do que você fala”, insisto. Seu avô tem um cachorro muito velho, com dentes imensos, que morde sem motivos. Sua professora é uma mulher severa, que inventa mentiras para castigar os alunos. A mãe é bondosa e dedicada, mas sempre queima a comida.

“O senhor não vê? São todos parecidos. Todos fazem coisas que, no fundo, não querem fazer.” Tento seguir o fio de seus pensamentos, mas ele não existe, ou eu não o vejo. “Esse garoto quer me enlouquecer”, concluo. Por que perco meu tempo com ele? Mas não consigo deixar de segui-lo. Talvez seja o fio.

“Mais uma fatia?” O garoto arregala os olhos. Mastiga. “O senhor ainda não vê o fio?” — ele insiste. “Está tudo ligado. As coisas acontecem sempre da mesma maneira e vão na mesma direção.” Uma direção que ninguém escolheu, ele continua. Uma direção inútil. Confesso que me sinto perdido, fio algum me sustenta.

Peço a conta. Quero ir embora, seguir ao encontro do senhor Cunha e receber meus livros. “Vou indo”, digo. “Isso não vai adiantar”, ele rebate. Pergunto por que diz isso. “O senhor também faz sempre as mesmas coisas. Coisas que não escolheu, mas faz. É o fio.” Exasperado, nem me despeço.

Enquanto desço a Avenida Calógeras rumo à livraria, o menino do fio não me sai da cabeça. Já não tenho o mesmo ânimo de antes. Sinto-me estranho. Atolado. Estou preso a alguma coisa que não sei definir. Será o fio? Já na livraria, me informam que o senhor Cunha não virá hoje ao trabalho. Um assistente me receberá.

Logo chega um homem careca e de nariz redondo, com a expressão de um duende. Traz alguns livros nas mãos. “Aqui está sua encomenda”, me diz. “As primeiras edições que o senhor tanto busca.” Pergunto o preço e vou ao caixa. Por instantes, tenho a impressão de que não estou em Campo Grande, mas no centro do Rio, em algum sebo da Rua São José. Há uma névoa em torno do caixa.

O homem com cara de duende me traz um pacote com os livros que, na pressa, não chego a ver. Acredito que são os livros que encomendei, me despeço e saio. A rua está mais movimentada. Meninos engraxam sapatos enfileirados ao longo de um muro. Estaria o garoto do fio entre eles?

O pacote de livros não é pesado, mesmo assim prefiro deixá-los no hotel. São poucas quadras. Avanço, ainda com o mesmo sentimento de incerteza. Volto a meu quarto sem saber por que volto. De repente, me vem a sensação de que errei de direção. De que, em vez de retornar ao hotel, dele me afasto.

Em uma banca de revistas, o jornaleiro me alivia e garante que estou no caminho certo. Ainda assim, a dúvida persiste. Não reconheço as lojas por que passo, as vitrines me parecem diferentes, até o calçamento parece ser outro. Pergunto de novo pelo hotel, respondem-me que é sim nessa direção, logo a duas ou três quadras dali.

Chego ao meu quarto, largo os livros sobre a cama e busco a folha de papel em que anotei o endereço de Manoel de Barros. Não a encontro. Onde a guardei? A ansiedade me faz suar. Tomo um copo d’água. Já me preparo para descer até a recepção e pedir um catálogo de endereços quando, ao abotoar o paletó, me dou conta: a folha anotada estava todo o tempo no meu bolso.

Tenho a sensação de que estou atrasado, mas confiro a agenda e verifico que a entrevista é só dali a uma hora. À minha revelia, e apesar dos fios em que me enrosco, tudo funciona. Tropeço, faço o que não quero, desvio-me de mim, mas, no fim, tudo dá certo. É o fio, agora eu entendo. Agora sim eu consigo vê-lo.

José Castello

É escritor e jornalista. Autor do romance Ribamar, entre outros livros.

Rascunho