O leitor assassinado

Em São Paulo, durante uma mesa-redonda do Seminário Internacional Rumos Jornalismo Cultural
Detalhe de “Saturno devorando seus filhos”, de Francisco de Goya
01/01/2013

Em São Paulo, durante uma mesa-redonda do Seminário Internacional Rumos Jornalismo Cultural, promovido pelo Itaú Cultural sob o comando de Claudiney Ferreira, ouço uma enfática e brilhante intervenção de Alex Primo que não consigo esquecer. O tema inevitável — com a mediação habilidosa de Fábio Malini — era o destino da escrita, da leitura e da informação em um mundo que, de tão acelerado e voraz, passou a devorar a si mesmo. Passou a se autodestruir.

Recordou Alex a sucessão de crimes que, nas mentes mais aceleradas e cegas, o avanço tecnológico tem se encarregado de cometer. Em princípio, “morreu” o impresso, restando apenas o mundo virtual e a internet. Mas eles também foram sacudidos por sucessivos assassinatos. Anunciou-se, primeiramente, a morte dos sites. Em seguida, dos blogs. Logo depois, do Twitter. Hoje já há quem afirme que o Facebook está moribundo, se é que já não está morto. É bom não confiar muito na sobrevida dos tablets e do iPad. O mais seguro, parece, é manter as barbas de molho — e continuar a correr, não importa para onde.

Os crimes em série, dignos dos mais sanguinolentos serial killers, parecem não ter fim. A tecnologia se transformou em um monstro irracional e predador que cria para, logo depois, devorar suas criaturas. Ela evoca a célebre tela Saturno devorando seus filhos, de Francisco de Goya. Quase três séculos depois, vem confirmá-la. A cada morte — a cada dentada —, morre, um pouco, o leitor. Se não morre, sangra e se debilita. As pesquisas asseguram que ninguém tem mais tempo para ler. Que, hoje, só nos resta correr. O mais dramático: ninguém sabe para onde.

Escritores, editores, empresários, leitores sacodem juntos no mesmo barco desgovernado. Para acalmar o monstro da técnica, ele é alimentado fartamente, com novos recursos e novas pesquisas, mas nunca está satisfeito. Sua fome é uma fome sem fim. Ao longo de todo o seminário, tive a sensação de que os debatedores — profissionais de primeiro time — flutuavam sobre o palco, sem saber onde pisavam. Faltava, a todos nós, na platéia também, um pouco de chão. O desejo de avançar a qualquer preço se confunde com o desejo de matar. Alguma coisa está completamente errada.

Um dia depois, já em Curitiba, vou ao lançamento de O percurso do olhar, de Regina Casillo, livro editado pelo Solar do Rosário que reúne a reprodução de telas inspiradas em artistas paranaenses: Claudia de Lara, Dani Henning, Sandra Bonet e Sandra Hiromoto. O lançamento do livro é também o vernissage de alguns dos principais trabalhos das artistas. No lindo casarão do Solar, eles ganham ênfase e nobreza.

Depois de visitar a exposição, sento-me a um canto para folhear o livro. É aí que deparo com Vitrine, acrílico sobre tela de Claudia de Lara, um trabalho suave, difuso, em que predominam o amarelo, o magenta, o dourado e o negro. Em uma sala antiga, uma mulher lê o que pode ser um livro, ou uma revista. Isso não importa. A certa distância, seu cão a vigia. Indiferente ao real, a mulher tem o olhar derramado sobre o livro. Preso a ele. O mundo à sua volta, sereno e silencioso, parece não existir. As coisas existem dentro dela, e não fora. Toda leitura, num papiro ou num tablet, é sempre uma viagem interior.

Valores que hoje costumamos desprezar — a lentidão, a concentração, a entrega, a introspecção —, elementos fundamentais ao ato da leitura, envolvem o trabalho de Claudia de Lara em uma atmosfera de conforto e confiança. O mobiliário, fora de época, indica uma despreocupação serena com a passagem do tempo e com a velocidade do mercado. A luz suave que se dissemina em todo o ambiente indica a possibilidade da continuação e da persistência. A luz é um fio em que o real se prende e que lhe empresta um sentido.

Não é preciso muito para ler, basta à personagem de Claudia entregar-se a si mesma. Bastar-se. Não há vestígio algum de morte, mas a vida também não se impõe através da velocidade, ou do grito. A vida despreza o acelerado e o feérico, contentando-se com seu próprio e manso desenrolar. A vida escorre, lenta e doce, sem qualquer risco de afogamento. Admito: a visão da mulher que lê indiferente à passagem do tempo e aos avanços da técnica me apazigua. Concluo: ao contrário do que se pensa, a técnica não mata.

A tela de Claudia de Lara poderia estar exposta em São Paulo, em plena mesa de debates, como uma visão do impossível. Ou será do possível? Ela ajudaria Alex Primo a mostrar que uma sucessão louca de mortes que parece definir nosso século 21 não pode ser uma garantia de vida, mas, em vez disso, sua condenação. Tenho certeza de que podemos ler um blog, acessar o Twitter ou o Facebook, manipular um tablet ou um iPad na mesma posição serena, com a mesma entrega e o mesmo silêncio. Não estão em jogo o papel, o mundo virtual ou a tecnologia, mas a capacidade humana de conservar o comando de si.

Não: a técnica, por mais veloz e inebriante que seja, não é a assassina do leitor. Não pode matar a introspecção radical e a leve meditação que definem o ato da leitura. A aposta total na técnica é, ela sim, a morte da própria técnica. Sem a dosagem do humano, avanço algum tem qualquer sentido. Sem a permanência do humano no centro de nosso destino, conquista alguma nos serve. Tanto o papel como a linguagem virtual não passam de caminhos que nos conduzem a nós mesmos. É essa queda em si, suave e inspiradora — e que Claudia de Lara pinta tão bem —, que continua a nos definir.

Nota
O texto O leitor assassinado foi publicado no blog A literatura na poltrona, mantido por José Castello, colunista do caderno Prosa, no site do jornal O Globo. A republicação no Rascunho faz parte de um acordo entre os dois veículos.

José Castello

É escritor e jornalista. Autor do romance Ribamar, entre outros livros.

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