O jogo das contas de vidro

O título de um dos clássicos do alemão Herman Hesse desencadeia um diálogo curioso e enigmático no calçadão de Copacabana
Ilustração: Thiago Thomé Marques
01/02/2022

Há um romance de Hermann Hesse, o escritor alemão, chamado O jogo das contas de vidro. Guardo, como um tesouro, uma velha edição brasileira, que comprei quando tinha 20 anos. Nunca o li. Li muitos livros de Hesse, por várias vezes, mas esse não. Nunca. Talvez seja um projeto para este verão.

O romance foi publicado em 1943, ainda durante a guerra, quando Hesse já se tornara cidadão suíço. Também é conhecido como O mestre do jogo. Enquanto não começo a ler, a enfim ler, ao longo de todos esses anos intriguei-me com o título misterioso.

Talvez seja o medo de quebrar o mistério guardado nesse título que me tenha impedido de ler o romance. Temia vê-lo explicado. Temia, e ainda temo, que o mistério se quebre. Preferi ficar com o título.

Títulos sobrevoam muito acima dos livros, como pássaros que rondam uma imensa montanha. A montanha é majestosa e alta, mas eu não consigo desviar os olhos do pássaro.

Ainda agora, caminhando pelo calçadão de Copacabana, o título do livro de Hesse, mais uma vez, me ronda. De asas abertas, tira rasantes sobre minha cabeça. Distraído, ao lado de um quiosque, esbarro com um saco de pipocas que alguém derrubou. As pipocas são as contas de vidro. Elas brilham ao sol. Reluzem sobre poças de chuva.

Não consigo desviar os olhos das pérolas falsas. Quantos livros estive à beira de ler, cheguei a carregar em minha mochila, ou em minha mala de viagem, e nunca li? Não é por acaso que aquelas contas estejam derramadas no calçadão. Não pode ser por acaso. Alguma coisa nelas me arrasta de volta ao romance de Hesse.

Um cachorro se aproxima. Fareja as pipocas, as despreza e se vai. Um menino passa correndo sobre elas. A mãe grita, reclama que ele vai se sujar e o puxa pela camisa. Ele chora. Quer as pérolas, mesmo que não lhe sirvam para nada.

Cenas se desenrolam sobre meu tesouro. Sobre as contas de vidro de Hermann Hesse, agora jogadas em Copacabana. As pérolas são um palco. São também as linhas sobre as quais um escritor — Hermann Hesse — escreve sua história.

“O senhor está perdido?” — um rapaz me pergunta. Ergo os olhos e o observo, mas minha mente permanece nas pérolas. Está no livro que não li e, agora mais ainda, em uma fotografia antiga de Hesse que uso como marcador de páginas.

O rapaz pensa no pior: “O senhor lembra quem o senhor é?”. A contemplação é vista como sinal de senilidade. Só os velhos e os tolos param e observam longamente o que todos desprezam. A introspecção seria uma forma de loucura. “Não se preocupe, garoto, eu estou bem.” Mas ele não está convencido.

Pergunta se pode me acompanhar até uma mesa. Talvez uma água de coco me ajude a recuperar as forças. “Também não me sinto fraco”, esclareço. Ainda assim, com os olhos postos sobre as pipocas que brilham como pérolas, o pescoço torto, eu o acompanho.

Sento-me. Antes que eu pense, ele me traz um coco. Está bem gelado. Fez questão de pagar. “Você já leu Hermann Hesse, menino?” Deve ter seus 17 ou 18 anos, a idade em que eu mesmo comecei a ler Hesse. “Li quem?” Mudo a pergunta: “Quem você lê?”. Vacila. “Sigo muita gente no Face, mas me esqueço dos nomes.”

Explico, com a preocupação de não parecer desrespeitoso, ou pedante, que não falo das redes sociais, mas de livros. “Li uma biografia de…” Ele empaca. “Esqueci o nome.” Admite logo que, na verdade, só começou a ler. Abandonou o livro já nas primeiras páginas.

“E você não sente falta?” Estufa um pouco o peito e diz: “As redes sociais e os livros do colégio me bastam. Não sobra tempo”. Estranho ver a literatura como um resto. Algo que fica no departamento das sobras — como a xepa de uma feira. Penso nisso, mas não digo nada. Não quero ofendê-lo. Preocupou-se comigo, não merece um desaforo, mas gratidão.

Tenho vontade de lhe dizer que eu também nunca li o grande romance de Hermann Hesse. Sem muita esperança, falo de O jogo das contas de vidro, o romance que nunca li. Jornalistas são bons nisso. “É um jogo online?” — ele pergunta, interessado. “Não, é um livro, já lhe disse.”

O rapaz parece disperso. Preocupa-se comigo, é generoso, mas não consegue me escutar. Minha falecida mãe me dizia: “Não queira ser velho, ninguém escuta os velhos”. Mas acho que não se trata só disso. O rapaz tenta me ouvir, mas não consegue sincronizar com minha lentidão.

Levanto-me, aperto sua mão, agradeço e vou na direção das pérolas. Ele jamais entenderia que aquelas pipocas murchas são contas preciosas. Também não entenderia que, no aglomerado de letras que os livros guardam, existem histórias. É bondoso comigo. Mas será mesmo comigo, ou com o homem, outro homem, que ele pensa que eu sou?

Volto a parar diante da poça de contas que brilham ao sol. Agora vejo claramente: não são pérolas, são contas de vidro. Olho e não as entendo. Elas me levam a pensar na matemática, em fórmulas e teoremas que, também eu, nunca compreendi.

O professor Jacques as rabiscava no quadro negro em letras pequenas. Eu via, mas não via. Via os desenhos das letras, via o hieróglifo antigo, via o que não conseguia ver. Enigmas, e não uma equação que eu devia resolver. Por isso, por dois anos seguidos, fui reprovado em matemática.

Pessoas continuam a saltar sobre a poça, ninguém dá importância às contas de vidro jogadas, como conchas, sobre a calçada. Até que uma mão pesada se encosta em meu ombro. Viro-me. Dou de cara com um policial fardado.

Atrás dele, está o rapaz. “O garoto me disse que o senhor precisa de ajuda”, o policial explica. “Mas então ele insiste!” — eu exclamo. “Já disse que estou bem. Obrigado pela preocupação.”

Será que pretende me levar preso? Será um crime olhar para pipocas derramadas no chão? Que não consigam ver contas de vidro, mas apenas pipocas. E daí? O guarda me olha perplexo. Não sabe o que fazer. “Estou incomodando alguém?” — eu pergunto. “Não senhor, não está. Me desculpe. Pode ir.”

Posso ir, mas não vou. Espero que os dois se afastem, conversando sobre as desgraças da senilidade, e volto a observar minhas pipocas. Tomo um susto: um cachorro, deliciado, as saboreia. Acho que só os cachorros me compreendem.

José Castello

É escritor e jornalista. Autor do romance Ribamar, entre outros livros.

Rascunho