O homem inútil

Um menino abandonado à sorte na rua e a incapacidade de um adulto em ajudá-lo
Ilustração: Vitor Rocha
01/08/2023

Faço caminhadas diárias pelas ruas de meu bairro. Um bairro de classe média, só casas e jardins, árvores antigas, gramados, terrenos baldios. Ainda são poucos os edifícios. Quase ninguém anda pelas calçadas, ainda mais na parte da manhã, quando caminho. Volta e meia, alguém passa com seu cachorro. E é tudo.

Avanço sem direção. Até que, em uma esquina, ouço um choramingo. Não é forte, embora aflito, e se misture com um respirar ofegante. Parece vir das paredes de um muro. Inspeciono. Logo à frente, encostado ao muro, alguém montou uma casa de cachorro. É velha, a madeira está apodrecida. Parece abandonada.

Ainda assim, para me proteger de um ataque inesperado, ou de uma mordida, passo para o meio da rua, mas continuo a seguir o muro. Só quando chego diante da casa vejo que, dentro dela, não há um cachorro, mas um menino. Um garoto muito magro, esmolambado, triste. Está encolhido no fundo da escuridão.

Assim que eu o encaro, o garoto passa a rosnar. É um rosnado forte, amedrontador, de raiva. Não me mexo. Meu medo agora é que o menino se assuste e fuja. “Posso lhe perguntar uma coisa?” — eu arrisco. O rosnado aumenta, o olhar se arreganha, os braços se colocam em posição de ataque, como em um ringue.

“É só uma pergunta rápida, será que posso fazer?” E não me mexo, ali fico, vigiando sua dor. Aos poucos, o rugido abranda e se torna só uma lamúria. Quase um choro. Na verdade, logo entendo que o garoto, de fato, está chorando. Engole as lágrimas, mantém a posição de combate, mas não me engana.

“Podemos conversar?” — repito. Com grande dificuldade, como se arrancasse as palavras dos ossos, ele me diz: “Cai fora”. Sei que esse “cai fora” não deixa de ser um pedido para que eu fique. Um apelo tímido, perfurado pelo medo, talvez pelo desespero. Sento-me no asfalto, bem diante da casa. Choveu essa manhã e o chão está gosmento.

“Cuidado com o bicho”, grita um rapaz que passa às minhas costas. “Ele parece violento.” Viro-me e lhe digo que não há bicho algum, que a casa é habitada por um garoto. “Falo dele mesmo”, o rapaz insiste, com um sorriso rude. Tenta ajudar, mas ao tentar ajudar, despeja sobre mim todo o seu nojo. E o seu ódio.

Ignoro-o e volto a encarar o menino. “Esse cara aí é do mal”, ele me diz, referindo-se ao rapaz. Pergunto por que diz isso, se ele já lhe fez alguma maldade, se já o importunou. “Ele só vem aqui para me enxotar, mas eu não tenho para onde ir, então eu fico.” Ao dizer isso, quase sorri, um sorriso de quem se desforra.

“Sai daí, me dá um abraço”, eu peço. Ele não se mexe. Talvez eu tenha sido rápido demais em minha aproximação, preciso respeitar o tempo do garoto. Então, cruzo os braços e me esforço para ficar em silêncio. Ainda assim, ele me pergunta: “Você é da polícia?”.

Talvez tenha sido melhor que não tenha me dado o abraço que pedi. Podia parecer estranho um menino pequeno abraçado a um marmanjo desconhecido. Podiam pensar coisas. Eu correria riscos. O garoto é sábio: a distância nos protege. E é ela que assegura que possamos conversar.

“Vou chamar o porteiro para expulsá-lo daí”, grita o rapaz que, ao contrário do que pensei, não seguiu seu caminho. O tom de voz é asqueroso. Boçal. “Deixa o garoto quieto, você não vê que ele só está com medo?” — eu digo. O rapaz dá uma gargalhada. Bem nojenta. Depois diz: “Vejo que o senhor é um desses imbecis que insistem em defender os pobrezinhos”.

“Cai fora”, agora sou eu quem digo, imitando a recepção que o menino me deu. Volto a olhar para o garoto, que se encolhe ainda mais, como um cachorro que não sabe onde se esconder. Enquanto isso, o rapaz caminha em direção a uma garagem. “Valdemar”, ele grita. “O vagabundo voltou. Melhor trazer ajuda.”

“Melhor é a gente cair fora” — eu digo para o garoto. Ele não se mexe. Os lábios tremem, um fio de suor escorre pela testa, mas nem o pavor o leva a confiar em mim. É que ele tem medo também de mim — só agora entendo. E por que não teria? Sou tão boçal quanto o rapaz boçal. Estamos em extremos opostos da mesma estupidez.

O rapaz é estúpido porque vê o garoto como um rato, que ele deseja enxotar, senão exterminar. Eu sou estúpido porque, tomado pelo sentimentalismo, tento salvar o menino de seu destino. Mas talvez minha estupidez possa produzir um efeito benéfico. Se não irei salvá-lo, pelo menos ajo como um alarme que o alerta para fugir. E lutar.

“Vai ficar aí parado esperando que o arranquem à força?” — eu pergunto. De cara amarrada, ele responde: “E o que você tem a ver com isso?”. Talvez eu seja um comparsa do rapaz que deseja expulsá-lo. Talvez seja tudo uma armadilha e eu faça parte da armadilha, sem perceber isso. Isso quer dizer que sou um inocente? Não há qualquer inocência na minha vontade de ajudar. Eu sei: o garoto continuará na rua. Só quem voltará para casa com a consciência mais leve serei eu.

Assusto-me com meu pessimismo. Será que, diante de um menino que sofre, de um menino frágil e indefeso, não há nada que um homem adulto possa fazer? Somos todos inúteis diante da dor alheia? A compaixão não passa de um bom sentimento dos contos de fadas?

Continuo sentado no asfalto, observando o garoto. Mas meu coração agora se aperta. Na impotência do menino, vejo a minha impotência. A minha inutilidade. A minha incapacidade de lutar. Estou aqui, sou um cidadão livre, nada me prende. Contudo, eu me prendo. A descoberta é escandalosa: sou um prisioneiro de mim mesmo.

Enfim, vexado, com o rabo entre as pernas como um vira-latas, eu me levanto. “Até mais, garoto. Boa sorte. Eu vou indo” — digo. Quanto cinismo nos meus votos de boa sorte. E quanta arrogância. Ajo como se bastasse ao garoto se decidir, “agir como um homem”, para se safar da situação. Pensar assim me alivia. Eu não presto.

Assim que me viro, o rapaz boçal se aproxima, acompanhado de um policial. Vêm em passos largos. “Não toquem nesse menino”, ainda consigo dizer. O policial estufa o peito, se aproxima de mim e grita: “Cai fora”. E, manso como um cão perebento, enojado, eu me afasto.

José Castello

É escritor e jornalista. Autor do romance Ribamar, entre outros livros.

Rascunho