O homem do cobertor

O abraço desajeitado durante o encontro com um velho que busca desesperadamente aquecer um pouco o corpo
Ilustração: Paula Calleja
01/09/2022

Fujo do vento que sopra na Atlântica e me embrenho pelas ruas internas do Leme. Logo à frente, vejo um velho — um homem cansado e triste como eu. Apoia-se nas grades de um prédio, tem as mãos abraçadas aos joelhos, o rosto coberto com rugas negras, os cabelos em cataclismo. Sua figura é incoerente e torta. Logo que me vê, ele grita: “O senhor me arranja um cobertor?”.

Se meu agasalho de lã já não basta para conter o vento, imagino o que sente o homem dentro de uma camiseta rota. É magro. E é também curvo. Tem o olhar vazio dos monges, mas também desesperado. Nada nele se harmoniza, ou combina. A tranquilidade e a dor não se excluem, eu penso.

Antes que eu me afogue em meus pensamentos, diminuo os passos e o encaro. É claro que não trago um cobertor comigo. É domingo, já anoiteceu, só os bares e os restaurantes continuam abertos. Onde, a essa hora, eu compraria um cobertor? Continuo a observá-lo, com a sensação bizarra de que me contemplo em um espelho. Não faz sentido, mas é o que sinto. Talvez isso seja o que chamam de empatia.

A quietude do homem me impressiona. Não posso negar que há afeto em seu rosto. Abraça a si mesmo, aos ossos finos e curvos, como se embalasse uma criança. “Só estou lhe pedindo um cobertor velho”, ele insiste e, de fato, é só isso o que me pede. Não me ofende, nem me ataca, tampouco me importuna, mas, ainda assim, eu me assusto. Sinto-me invadido. Contudo, nada tenho a dizer. Palavras, nessas horas, são puro lixo. O homem espera de mim um gesto. Um ato.

Em um rompante, digo: “O senhor espere, por favor”. Digo e já me arrependo, porque sei que estou mentindo. Nem mesmo em casa tenho cobertores, só os edredons finos. Não sei se para me agradecer, ou se para me esmurrar pela mentira que lhe dei, o homem tenta se levantar. Tenta, mas não consegue e cambaleia. Corro para apoiá-lo antes que caia e se machuque. E ali ficamos os dois, inclinados na calçada, um velho que tenta se erguer e outro que luta para segurá-lo. Nenhum dos dois vence, nenhum dos dois completa seu gesto.

Logo sinto o fedor azedo do homem. Sua boca se abre bem à altura do meu peito, escancarada e seca, como se esperasse o leite que eu também não tenho para lhe dar. O mau cheiro nos dissolve na noite. Um porteiro logo se aproxima. Em seu uniforme de gala, com jaqueta e gravata, ele me pergunta: “O senhor precisa de ajuda?”. Será que não percebe que eu e o homem estamos prestes a desmoronar? Que, em nossa pose patética, não resta sequer um fio de equilíbrio?

Encaro-o. O que me dá raiva, mais que tudo, é sua apatia. A delicadeza ensaiada, protocolar, é só um disfarce para a indiferença. Para o desdém. Ele é só um porteiro cego que segura a porta para que entre o morador que tanto despreza. Um ator — e acredita que atuar basta. Tanto que não se mexe, nem toma uma atitude. Fica com suas palavras falsas. Com seu script de rato. Um rato perfumado, mas rato.

De repente, as forças me falham, o velho se solta e caímos juntos na calçada. Desabamos abraçados — como dois amantes em uma tela antiga. Uma mulher, que passa apressada, estanca, não por interesse ou por piedade, mas porque nosso abraço fecha seu caminho. “Jesus, proteja os alcoólatras”, ela resmunga. E salta sobre nós, agora reduzidos ao papel de entulhos. Se surgir um caminhão de lixo, nos levará.

Ignoro a mulher e seu nojo, e me ergo. Mas o velho permanece em uma posição ambígua, obscena. As pernas abertas. A boca aberta também — pronta para o beijo que ninguém lhe dará. Sou, então, tomado por uma fúria que, em geral, eu não tenho. “O senhor não vai nos ajudar?” — grito para o porteiro. “Vou sim. Vou chamar a polícia”, ele diz, erguendo o queixo de pelicano.

Claro que não fará isso. É preguiçoso, insensível e, além disso, a essa hora as ruas estão cheias de miseráveis a atravancar o passeio das famílias. Afasta-se, aborrecido, e eu o ignoro. Com forças que não tenho, ajudo o velho a se encostar em uma parede. Sem outra coisa para dizer, digo: “Espere um pouco que eu já volto”. As palavras me saem firmes, mas ocas. Sei que minto, que eu não voltarei, mas não tenho coragem de dizer a verdade. Sigo em direção à avenida.

Logo após a esquina, encontro uma loja de conveniência. Entro. Vendem bombons, cervejas, sandálias. Nada que possa aquecer o velho. “Você tem cobertores?” — ainda pergunto a um vendedor. “Não vendemos essas coisas”, ele diz, e se afasta, quase enojado. Ou o nojo não é dele, é meu. Repulsa a mim mesmo e a minha impotência.

Volto à calçada. Olho para os lados, vasculho os bolsos. Depois, olho para trás, na esperança de que o velho não seja testemunha de minha derrota. Não passo de um simulador. Um ator desamparado. Um patife. Melhor desistir e voltar para casa. Esquecer do velho, desistir do cobertor, seguir a vida como se nada tivesse acontecido.

A dois passos de casa, encontro uma carrocinha que vende pratos de sopa. A fumaça envolve a vendedora. Nela me afogo. Sem pensar, peço uma tigela de caldo verde. Para viagem, por favor. Agora sim, em passos de atleta, retorno ao Leme. Já de longe vejo o velho, agora agarrado às grades do prédio.

“Não achei cobertores, mas trouxe uma sopa.” Como se delirasse, o homem resmunga. Abaixo-me para ouvir melhor. São versos, ou mantras, balbuciados como arrotos. Talvez o estribilho de alguma canção de ninar. “O senhor pode falar mais alto?” Ignora-me e continua seu balbucio, como se gargarejasse. Ainda consigo captar palavras soltas: noite, levitação, espaço, fome. Não se concatenam. Talvez não tenham significado algum. Ainda assim, ele as recita como um poeta.

Sento-me a seu lado. Abro a tigela de isopor, desembrulho a colher de plástico e lhe ofereço a sopa. Não se mexe, continua afogado em sua canção. Antes que o caldo esfrie — como uma babá diligente — ofereço-lhe a primeira colherada. Ele abre a boca e a engole. Tudo parece natural e previsto. É a hora da ceia e o velho deve receber seu alimento. Enquanto lhe dou mais uma colherada, um homem passa e grita: “pederastas”. Ignoro-o. Ele desaparece. Devagar, o velho toma sua sopa até o fim. Logo cai no sono. Só depois me ergo e volto para casa.

José Castello

É escritor e jornalista. Autor do romance Ribamar, entre outros livros.

Rascunho