O homem de Kersting

O silêncio é muito mais forte que qualquer palavra
Ilustração: Dê Almeida
29/09/2016

Tranco-me no escritório para rascunhar minha crônica mensal para o Rascunho. Esta crônica que vocês agora talvez leiam, larguem pelo meio, talvez desprezem. Mil assuntos me passam pela mente, imagens descabidas, pedaços de leituras, lembranças remotas. Não consigo me deter em nenhum deles. Ao acaso — esse mestre que os cronistas, desde Rubem Braga, aprenderam a cultuar —, completamente por acaso e só por isso, passo a folhear um livro de pinturas do Romantismo.

Algo no Romantismo sempre me atrai, embora também me desperte medo. É como se me visse diante de imagens muito antigas de mim mesmo, como se folheasse trechos de minha infância mais precoce. Da qual, também, quase nada resta além de visões assombrosas, alguns vultos, muitos nomes e muitos pesadelos. Até que — em uma reverência definitiva ao ocaso — me vejo diante de Homem a ler à luz de um candeeiro, tela do holandês Georg Friedrich Kersting, pintada na primeira metade do século 19.

Sempre que a agitação contemporânea passa a me incomodar, sempre que me sinto em descompasso com os avanços de uma tecnologia que nos empurra para a frente mas também nos despedaça, me vem a sensação — talvez verdadeira — de que habito o século errado. De fato, isso sem dúvida acontece, pois nasci em 1951, em plena metade do século passado. Mas algo me empurra ainda mais para trás e é ao século 19, o século de meus avós, em que agora me vejo. Kersting vem apenas encarná-lo. Incorporá-lo.

Só conheci uma avó, Iracema de Aguiar Guimarães, mãe de minha mãe, que faleceu, aos 91 anos, em 1977. Fomos muito próximos. O mais belo: não pelas palavras, mas pelo silêncio. Fui um menino muito tímido mas que, quando provocado, desandava a falar e falar. Com a arma das palavras, enfrentei o poder de meu pai e as emoções fortes de minha mãe. Eles às vezes se cansavam de mim — e eu deles. Nessas horas, pedia para que me deixassem passar alguns dias com minha avó. Não: ela não me dava conselhos. Tampouco me consolava. Foi uma mulher de poucas, raras palavras. Abrigava-me em seu quarto, ligava o imenso rádio para que eu me distraísse a seu lado ouvindo as radionovelas, e ficava quieta, absolutamente quieta. Ainda hoje escuto seu silêncio — e como ele me faz bem.

Seu silêncio me curava, até porque abria espaço para meu próprio silêncio. Eu já não precisava mais falar, não precisava mais argumentar, ou me defender. Estava livre, assim, do vaticínio de meu pai que, repetidas vezes, previu para mim a profissão de advogado. “Advogado de defesa”, ele dizia, e acrescentava: “Com seus argumentos, você será capaz de tirar da cadeia o pior dos assassinos”. Mais tarde, tentou a me convencer a seguir a diplomacia. “Se você defende tão bem os próprios argumentos, com tanto ardor e eficácia, saberá defender muito bem até ideias que não sejam suas”, ele dizia.

Não estudei Direito. Nunca me interessei pela diplomacia. Não sei, porém, e francamente, como terminei me tornando jornalista e depois escritor — ofícios em que a palavra está sempre no centro. Minha avó Iracema me ensinou a, entre tantas palavras, preferir sempre ficar quieto. Ainda hoje, nas horas mais difíceis, o silêncio me salva. O silêncio é muito mais forte que qualquer palavra. Ele descerra o grande vazio que todos carregamos no peito. Esse rombo que nos assusta, mas que também nos sustenta. Isso que somos — e nada mais.

Vejam quantas voltas eu dei a partir da tela de Kersting. Vejam como uma pintura que trata do silêncio e da introspecção me leva — no teclado falsamente silencioso do computador — a tagarelar e tagarelar. Distraído, ainda não descrevi a tela de que falo. Sentado em um escritório obscuro (que agora mesmo, nesse momento em que escrevo, se parece muito com o meu, isso apesar da distância absurda de dois séculos), um homem se debruça sobre um livro aberto. Tem à sua frente uma luminária. As luzes da tela são esmaecidas e frágeis. Tudo se assemelha a certo cenário que carrego dentro de mim. Ali — nesse homem que lê imerso em um falso sossego — vejo um pouco de mim.

O silêncio é muito mais forte que qualquer palavra. Ele descerra o grande vazio que todos carregamos no peito. Esse rombo que nos assusta, mas que também nos sustenta. Isso que somos — e nada mais.

Não sei se o homem lê o livro que tem diante de si, ou se apenas o contempla. Se nele se contempla, como em um espelho. Mas há uma segunda coisa que consigo ver. Com a mão direita que segura a testa, enquanto a esquerda se espalma sobre o livro aberto, ele estabelece uma conexão espiritual entre o livro e si mesmo. Está — diriam os espíritas — a “receber” o livro, e não exatamente a lê-lo. Através das páginas que nós não podemos ver, não é o livro que ele lê, mas a si mesmo. E alguma vez, com qualquer leitor do mundo, será diferente?

Curioso — talvez não só curioso, mas proposital: na página espelhada do livro em que está a reprodução da pintura de Georg Friedrich Kersting, aparece, em dimensões bem menores, a reprodução de um segundo quadro do mesmo pintor. Diante do espelho, de 1827. De pé, metida em um vestido longo, uma mulher penteia os longos cabelos diante de um espelho. Aqui é claramente ela mesma — ou sua imagem — que a mulher vê. A tela tem um tom dourado, envelhecido — de algo morto. Roupas estão jogadas sobre uma mesa lateral. Uma suave cortina cobre a parte alta das janelas que cercam o espelho. Tudo é igualmente silencioso. Tudo leva à introspecção.

No breve texto de apresentação das duas telas, leio que Kersting (1785-1847) se notabilizou pela pintura de interiores, “um gênero estabelecido na arte holandesa do século 17”. Pulo, assim, mais dois século para trás. Escrevendo em pleno século 21, e estimulado apenas pelo acaso, já saltei por sobre quatro séculos inteiros. Não vou negar: é minha imagem que carrego para o passado. Mas — graças à velocidade da luz, ainda que em átimos de segundo — não é sempre no passado que estamos?

Aqui se repete comigo a descoberta, um tanto assustadora, um tanto fraudulenta, que sempre surpreende os cronistas. É buscando uma crônica — é em sua procura, e não em seu encontro — que uma crônica se faz. A crônica não é algo que já está pronto e que o escritor deve, num grande esforço, recuperar. A crônica é esse novelo que se desenrola: ela é esse desenrolar. Só assim, enfim, o presente nos chega. Só assim — como o homem de Kersting, mirando-se discretamente em seu livro — nossa própria imagem retorna. Só assim, num relance precário, chegamos a ser.

José Castello

É escritor e jornalista. Autor do romance Ribamar, entre outros livros.

Rascunho