O homem da casca

Ilustração: Tereza Yamashita
10/11/2016

Chega o e-mail de um amigo, agoniado e triste com as circunstâncias sombrias da vida brasileira de hoje, que se agravaram depois dos resultados das últimas eleições municipais. Divido com esse amigo as mesmas aflições, mas, ao contrário dele, acredito cada vez mais no poder humano de reação. A literatura — árdua, mas frutífera batalha contra o deserto da página em branco — me ensinou que é na adversidade, é contra ela, que surgem as melhores coisas. Você escreve para ferir a página, para penetrá-la, para inseminá-la. A literatura é luta, e a vida também é luta. Luta para quê? Luta não só para sobreviver, mas, sobretudo, para viver, já que apenas sobreviver não passa de outro nome para a morte.

Estou sempre cercado de coincidências. Elas me guiam e me norteiam. É preciso fazer uso das circunstâncias. Se o cavalo é rápido demais, tirar partido de sua fúria. Se ele é excessivamente lento, alguma vantagem também nisso haverá. Vejam só como a vida escreve. O e-mail de T. me chega só alguns minutos depois da leitura de Homem num estojo, um de meus contos preferidos de Anton Tchekhov. Trata-se da história de Biélikov, um professor de grego, homem que se distingue “pelo fato de que sempre, mesmo com tempo ótimo, saía de galochas, com guarda-chuva, vestindo um sobretudo forrado de algodão”. Leio a tradução de Boris Schnaiderman para a Editora 34.

Em vez de enfrentar as circunstâncias, Biélikov delas se defende. É um homem que se encolhe — e que aposta tudo na invisibilidade. Viver, para ele, é um sinônimo de desaparecer. Mas vejam como são as coisas. Apenas alguns dias antes de reler o conto de Tchekhov, de 1898, o acaso me levou a esbarrar em outro personagem, que a ele se opõe de modo radical. Numa semana de férias, assisti pela primeira vez a O barba ruiva, de Akira Kurosawa — história ambientada no Japão do mesmo século 19, que conta a história do doutor Kyojito Niide, médico de uma favela de Tóquio que enfrenta com tal vigor a doença e a miséria que parece ver através das pessoas. Mas eu falava de meu amigo T. que, em sua tristeza, me fez lembra mais a Biélikov e, apenas por contraste, levou-me à figura potente do Dr. Niide. O personagem de Kurosawa entende que o mundo é pura turbulência e sabe que precisamos nos movimentar dentro dela. Que precisamos reagir — como um doente acometido por febre alta, que não pode ceder à prostração, ou simplesmente morrer. Já o anti-herói de Tchekhov só aceita um mundo perfeitamente organizado e previsível. “Qualquer espécie de transgressão, omissão ou inobservância de regulamento causava-lhe profunda depressão.” Em outras palavras: Biélikov não aceita perder o controle das coisas.

É justamente isso — ver o mundo despencando numa direção que nos parece inaceitável e até abominável — que agora entristece a mim e a meu amigo. Em um telefonema posterior, falamos inclusive sobre o fantasma do americano Donald Trump, outro sinal escandaloso do retrocesso. O século 21, que começou também bem, nos lançou em um campo minado. Contudo, não devemos agir como Biélikov, que se refugiava em seu pequeno quarto, tão pequeno, diz o escritor russo, que lembrava uma gaveta. “Temia que acontecesse alguma coisa, que o Afanássi o apunhalasse, que entrassem ladrões no apartamento e, depois, tinha sonhos inquietantes a noite inteira.” Biélikov vivia em estado de sobressalto. Precisava se proteger cada vez mais, porque da realidade, ele acreditava, só se deve esperar o pior. Em outras palavras: ao contrário do Dr. Niide, de Kurosawa — que lutou até o fim para transformar o pernóstico Yasumoto em um grande médico, capaz de preferir permanecer na favela a transferir-se para a clientela dos bairros burgueses —, o personagem de Anton Tchekhov se define pelo abandono da luta. Que não é outra coisa senão o abandono da vida.

“Deitando-se para dormir, cobria-se até a cabeça. Fazia calor, o ambiente era abafado, o vento batia nas portas fechadas, algo silvava no fogão.” Mas Biélikov preferia encolher-se a enfrentar o mundo que o feria. “Está tudo bem, contanto que não aconteça alguma coisa”, meditava, agarrando-se à hipótese da imobilidade. Contra as garras e os movimentos de seu tempo — contra a devastação pela qual T. e eu agora nos sentimos cercados —, preferia, à reação, a renúncia. Quando um amigo lhe pergunta se pretende se casar, responde: “Não, (…) é preciso pensar previamente nas futuras obrigações, a responsabilidade… para que, depois, não aconteça alguma coisa”. O personagem de Tchekhov pretende paralisar o mundo. Deseja engessá-lo — deseja congelá-lo. Depois de recebê-lo em sua casa, Kovalenko, o irmão de sua noiva, se pergunta: “Por que fica ele aí, sentado em minha casa? Fica aí sentado, olhando, olhando?”. Não consegue entender o congelamento de Biélikov. Um homem para quem o “nada acontecer” é a melhor garantia que a vida pode nos dar.

Em um e-mail de resposta, limitei-me a dizer a T. que, sim, eu admito, também não sei bem o que fazer diante das circunstâncias atuais. Mas alguma coisa — ou algumas coisas — devem ser feitas. Tanto mais sombrio é o cenário que nos envolve, tanto mais devemos nos movimentar e insistir em viver. Não podemos imitar o personagem de Anton Tchekhov e simplesmente nos esconder num estojo. Não devemos cultivar uma casca protetora, e nos encapsular como lagartas, porque disso borboleta alguma surgirá. É preciso continuar a viver e enfrentar — seja o que for, seja de que tamanho for. Pois é. Um dia, depois de proteger-se ferozmente da vida porque a vida é dolorosa e adversa, Biélikov enfim morre. “Deitado no caixão, tinha uma aparência plácida, agradável, alegre até, como se estivesse contente porque, finalmente, haviam-no colocado num estojo do qual jamais saíra”. A inércia venceu. A tristeza (mas também a grandeza) do conto de Tchekhov está justamente nisso: em nos levar a encarar o pântano que nos cerca. Resistir à estagnação, respirar fortemente, insistir em viver.

Pergunta-se o narrador: “Realmente, Biélikov foi enterrado, mas quantos homens em estojo ainda ficaram, quantos existirão ainda!” Hoje — somente para insistir em fazer alguma coisa, ainda que uma pequena coisa —, dirigi-me ao correio e despachei para T. um exemplar dos contos de Tchekhov. Espero que o livro o sacuda — que a leitura do relato o desafie e o desperte. Não é para outra coisa que a literatura serve, senão para nos despertar.

José Castello

É escritor e jornalista. Autor do romance Ribamar, entre outros livros.

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