O disfarce do cachorro

Um animal leproso na porta de um hotel em Puno, no Peru, desperta no cronista sentimentos variados, como raiva e solidariedade
Ilustração: Denise Gonçalves
01/11/2021

Discórdia, agressões, violência. Onde tudo isso começou? Lendo — como um detetive — uma das cartas de Valter Hugo Mãe a Marcelino Freire, acho que encontro uma pista: “Eu dei de barato tantas coisas sobre a paz que talvez tenha esquecido de estudar corações, o verdadeiro lugar da guerra”. Sim, Mãe está certo. Não é que tudo se inicie dentro de nós, não somos o centro do mundo. Mas, em nosso interior, tudo fermenta e se decide.

No mês passado, falei aqui de Lucílio, o velho cão do senhor Dirceu. Pois os cachorros continuam a me perseguir. Agora é a imagem de Tambo, um cão leproso que conheci em Puno, no Peru, que me volta. Vale recordar. Chego de Cuzco, onde passei uma semana. Hospedo-me em um hotel diante do Titicaca. Exausto, arrasto minha mala para a recepção. Ainda do lado de fora, deitado sobre um dos degraus, vejo o cachorro.

Grande. Gordo — ou será inchado? O corpo coberto de feridas. Sem se erguer, ele abana o rabo. Meu primeiro impulso é largar a mala para lhe acariciar a cabeça. A visão das feridas — a lepra — me detém. Ainda resmungo: “Lamento muito, meu amigo”. Sei que ele não pode me compreender. Falo comigo mesmo. Lamento por meu medo, que é também prudência. O falso amigo sou eu mesmo.

Não me mexo. Tambo — assim eu o batizei depois, em homenagem a Ollantaytambo, onde estive para uma visita turística — crava seu olhar direto em mim. Sei que me aproprio, um pouco, de Mr. Bones, o cão de Paul Auster, protagonista do romance Timbuktu, de 1999. Mas Mr. Bones está bem, quem está à morte é seu dono, o poeta Willy. Aqui é o contrário: é Tambo, o cão, quem agoniza. Porque ele só pode estar morrendo.

Por sorte minha mala não é grande, posso levá-la no colo, sem importunar Tambo. Era a ele, o cachorro, que eu devia abraçar, mas o nojo e a higiene me impedem. Deixando-o para trás, entro na recepção do hotel, cheio de raiva de meus valores humanos. Vergonha de ser humano. Culpa de ter tantos pudores e de tomar tantas precauções. O velho do balcão conserva cabelos negros e espetados, que deviam estar na pele de Tambo. Quando fala, mostra uma língua vermelha e cheia de sangue, que devia estar na boca de Tambo. É um ladrão de cachorros. Que absurdo roubar um cachorro que agoniza.

Pergunta o que desejo. “Quero adotar aquele cão”, eu digo, surpreso com o que digo. “O que o senhor disse?” Dentro de seu corpete brilhoso, está desconcertado. Acho que vai babar. Acho não: ele baba. De repulsa? De raiva? Talvez me diga que a raiva seja a doença do cão que se deita à entrada do hotel. Ainda me adverte: “O senhor não tropeçou no…” Corto-o. Não quero ouvir o nome falso de Tambo. “Tenho uma reserva e estou com pressa”.

Entrega-me a chave do quarto. “Hotel Libertador”, está escrito. A que libertador se refere? Será Simon Bolívar? O nome é uma advertência: a mim, o viajante sem escrúpulos, cabe libertar aquele cão que sofre. Libertar de quê? De si mesmo. Resgatá-lo. Adotá-lo. Levá-lo comigo de volta para o Brasil. Mas o leitor já percebeu: esse é um papel que eu, embora queira, embora o deseje com um ardor louco, não posso sustentar.

Nem bem cheguei ao hotel e já fracassei. Devo subir a meu quarto, mas antes preciso dar mais uma olhada em Tambo. Para quê? O que espero ver? Não sei. Não afagarei o cachorro. Não tocarei nele. Não lhe darei a comida que deseja, nem o levarei a um veterinário. Existem veterinários em Puno? Na internet, descubro depois uma clínica chamada Señor de los Milagros. Mas como eu carregaria Tambo até seu milagre?

Nenhum taxista aceitará levá-lo. Ninguém do hotel. Estamos presos na escadaria da entrada. Creio que Tambo já não consegue se levantar. Mais um motivo para que eu o adote, penso. Para que eu o leve comigo para o Brasil e lhe dê uma vida digna. Uma morte digna, que seja. Penso isso — mas por que penso isso? Por que esse pensamento, mesmo absurdo e irrealizável, não me abandona?

Chego a meu quarto. Apertado. Escuro. O banheiro é antigo, a torneira pinga. A torneira chora, ou sou eu que choro? Penso então no coração em guerra de que fala Valter Hugo Mãe. Um campo de batalha. Uma luta que não se resolve, seja a solução que eu venha a lhe dar. Não basta fazer, pois a divisão continua. Não há uma solução, mesmo quando a coisa se resolve. A guerra é contínua. Perpétua. É a guerra que leva o coração a se mover.

Procuro o telefone de um consulado. Só há um consulado em Arequipa. Tento. A essa hora, ninguém atende. Poderia ligar para a embaixada, em Lima, mas esbarrarei no mesmo silêncio. Ninguém diz nada. Na escadaria, a essa hora, Tambo ressona. Será que o pisaram? Será que alguma boa alma tomou meu lugar e o ajudou?

Ligo para a recepção e pergunto pelo cachorro. O velho diz: “Está aí há dias. Enrolado que nem um tapete. Não se move”. É um perigo, acentua. Pode morder e transmitir. Transmitir o quê? A raiva. Não penso na doença, mas no sentimento. Quem sente raiva não é Tambo, sou eu. Não, não tenho raiva de Tambo, que nada me fez. Tenho raiva de mim. Quem está doente sou eu. Nada costura as duas metades em guerra de meu coração. Por que desejar a salvação de um cachorro quando tantos humanos morrem em torno dele?

Raiva no meu peito. Agora sou eu que guerreio com meu próprio coração. Quisera não sentir o que sinto. Quisera não sentir. Uma tolice pensar que os sentimentos vêm do coração, não acredito nessas asneiras românticas. Mas de onde vem a raiva? Quem começou a guerra? Quem deu o primeiro tiro?

Volto à portaria. Desço as escadas. Quando salto sobre Tambo, ele me observa com indiferença. Já desistiu de mim, se é que, em algum momento, contou comigo. Um cão não tem esperança, um cão respira. Eu sei que cachorros são carentes. Querem um afago, uma brincadeira. Mas esperança? Sua relação com o tempo, fragmentada e em cacos, não lhes dá tempo para a esperança.

Atravesso a rua e me recosto no muro que margeia o lago. De longe, ainda observo Tambo. Os raros hóspedes desviam, sequer o olham. Uma senhora gorda coloca o lenço sobre o nariz. Nojo: eis o sentimento que Tambo desperta. Mas ele nem sabe disso. Sabe que se sente muito cansado. De quê? Creio que cansaço de sua solidão. No entanto, quando homens e mulheres estão sozinhos agora? E eu nem penso nisso.

José Castello

É escritor e jornalista. Autor do romance Ribamar, entre outros livros.

Rascunho