O caçador desiludido

A busca pela própria voz na visão de autores que almejaram e conseguiram conviver com essa experiência radical de escrita
Ilustração: Aline Daka
30/05/2020

Ninguém se torna escritor se não consegue ouvir a própria voz. Esta é uma experiência radical, e absolutamente íntima, que perdura por toda a vida e, em alguns casos, coloca a própria vida em risco. Uma experiência que traz potência, mas também decepção. Basta pensar em Virginia Woolf, já uma escritora consagrada, a ouvir vozes e mais vozes — que eram suas, pois vinham de sua mente, e não de algum espírito barulhento. Vozerio insuportável, que a levou a se matar, em 1941, nas águas do rio Ouse.

“Para um escritor, a voz é um problema que nunca o deixa em paz”, diz o poeta inglês Alfred Alvarez (1929-2019) no ensaio A voz do escritor (Civilização Brasileira). Ter uma voz, contudo, não é, como muitos pensam, o mesmo que chegar a ter um estilo. Isso, um estilo, que cheira mais à moda que a literatura, qualquer escrevente aplicado pode ter. E é um perigo, ainda mais se o escritor se tornar famoso, uma vez que o estilo encontrado, que a princípio terá a aparência de um tesouro, logo se transformará em uma couraça, textura de padrões e de repetição.

Ouvir a própria voz, alerta Alvarez, nada tem a ver, ainda, com a desgastada visão romântica da liberdade criadora. A ideia comum do “escrever livremente”, que seduz a tantos escritores ingênuos, é, na verdade, uma armadilha. “A linguagem é uma prostituta porque, se deixada por sua própria conta, vai executar os mesmos truques gastos com todo mundo”, Alvarez alerta. Por isso, o escritor alemão Karl Kraus dizia que a linguagem “é uma prostituta universal que eu tenho de transformar em uma virgem”. Não é nada fácil, contudo, perseguir essa virgindade.

“O principal é que essa voz é diferente de qualquer outra”, diz Alvarez, e que ela “está falando com você que lê, comungando com você em particular”. É uma voz secreta, e um pouco inaudível, que vem de algum lugar pouco preciso; lugar que, com algum risco, podemos chamar talvez de inconsciente. Freud, contudo, foi o primeiro a dizer que ele não “descobriu” o inconsciente. “Foram os poetas e os filósofos, muito antes de mim, que o descobriram”, explicou. “O que eu descobri foi o método científico pelo qual o inconsciente pode ser estudado.”

Não é uma voz precisa, não tem a nitidez dos discursos, nem o rigor dos diagnósticos médicos; ao contrário, é vaga e exige um grande esforço da parte de quem deseja ouvi-la. Voz só murmurada, e não por musas, ou por espíritos, mas pela mente do próprio autor. O inglês Samuel Coleridge dizia que, para chegar a encontrá-la, o escritor precisa de certo “alheamento”. Os leitores, se quiserem realmente entrar em um livro, necessitam também se ausentar do mundo. E até se alhear um pouco de si. “Tudo o que se exige é atenção e distanciamento”, resume Alvarez. “Escutar, pensar e abrir mão de si mesmo, tudo ao mesmo tempo.” Não é um caminho fácil. Não é com facilidade, ou armado de alguns truques, que conseguiremos trilhá-lo. Não existem apostilas, roteiros, scripts, bulas — nada. Você está sozinho e não conta sequer consigo mesmo.

Daí o ridículo que ameaça não só os escritores “de estilo” — os empolados, os refinados, os intelectuais, os esnobes —, mas também os escritores vanguardistas, que escrevem para cumprir receitas, ou aplicar manuais, ou seguir manifestos. Os dois tipos cometem o mesmo engano: fazem qualquer coisa, menos ouvir a si. “Não pretendo ter estilo, eu quero ter voz”, desabafou, certo dia, o escritor norte-americano Philip Roth, tocando no centro da questão. Sempre irônico, o irlandês Samuel Beckett disse que escrever com estilo é o mesmo que “colocar uma gravata-borboleta em torno de uma garganta com câncer”.

Encontrar a própria voz, diz Alvarez, é algo semelhante a tornar-se adulto. E tornar-se adulto, nesse caso, é escapar da desordem e da inconstância fervente que caracterizam a juventude. Dos tiques, dos modismos, das imitações. Alvarez se ampara em versos de W. H. Auden: “Fico muito contente por não precisar jamais/ Tornar a ter 20 anos e passar outra vez/ Por aquelas tantas horas de confusão e de fúria, de vaidade e desgaste”. Há uma exigência de silêncio para que uma voz própria se deixe ouvir. É algo tão íntimo quanto fazer sexo, ou defecar.

Talvez a maior dificuldade esteja no fato de que a “voz autêntica” nem sempre é aquela que o escritor deseja ouvir. A literatura de qualidade não subverte só clichês literários e convenções sociais. “Ela também subverte os clichês e as convenções nos quais você mesmo desejaria acreditar”, Alvarez lembra. Daí que encontrar a própria voz, muitas vezes, decepciona. Dói muito, já que o que se encontra nem sempre é o que se estava procurando.

Pouco depois do suicídio da mulher, a poeta Sylvia Plath, o escritor Ted Hughes fez uma confidência a Alvarez. Relembrou certa noite em que acordou, por acaso, em plena madrugada e deparou com a poeta a perambular, inquieta, pelo quarto, reclamando que não tinha sobre o que escrever. Aflito, e só para tranquilizá-la, ele sugeriu: “Que tal dar uma olhada pela janela e escrever sobre o que vir lá?”. Sem reagir, Sylvia seguiu a sugestão do marido. “Muito compenetrada, começou a esboçar uma cena noturna e terminou por representar o mais agudo desespero”, Alvarez resume. Não foi, na verdade, sobre a noite que ela escreveu, mas sobre a voz que a visão da noite lhe permitiu ouvir. Naquela madrugada, ela começou a escrever seus últimos grandes poemas.

Não é fácil chegar a isso, exige que o escritor se livre não só da vaidade, de suas próprias ilusões, mas também do orgulho. Foi por isso que, sempre que terminava de escrever um relato, o escritor inglês Rudyard Kipling — ciente de que originais frescos são como filhotes indomados — os aprisionava, por algumas semanas, em uma gaveta. Depois os relia, e a primeira coisa que tratava de cortar não eram os defeitos, mas os trechos que lhe trouxeram mais orgulho quando os escreveu. Não foi por outro motivo que o poeta W. B. Yeats definiu a escuta da própria voz como a “fascinação pelo que é difícil”. Não é fácil ouvi-la, e o pior: não é confortável admitir que ela veio de dentro de você.

José Castello

É escritor e jornalista. Autor do romance Ribamar, entre outros livros.

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