O brilho de um enigma

Em "Passageiro interior", Juliano Moreno viaja para dentro e chega ao projeto da poesia: escrever aquilo que não se deixa escrever
Ilustração: Fabio Miraglia
02/11/2020

Na primeira década do século 21, o poeta cuiabano Juliano Moreno gastava diariamente muitas horas em viagens de ônibus, entre escola e casa, entre casa e trabalho. Enquanto o ônibus sacolejava, Juliano, indiferente à paisagem e à fisionomia vazia dos passageiros, dedicava-se a ler. “Tive momentos de alumbramento”, ele rememora no posfácio de Passageiro interior. Cumpria não só os mesmos trajetos, tediosos, mas viajava para dentro. Essas súbitas iluminações, aos poucos, se transformaram em notas, que dão forma a um diário de navegação. A elaboração desse diário é o livro que nos chega.

No ônibus, imagina o poeta, afogados sob o peso do trânsito e da rotina, algemados ao tédio, cada passageiro “age como se morasse/ numa esfera submarina”. Vivem, na verdade, uma experiência paradoxal. Por um lado, estão em trânsito — viajam de um ponto a outro da cidade. De outro, estão presos — não só na máquina barulhenta, mas no tédio que ela carrega. Essa dupla condição gera, em Juliano, súbitas iluminações. Empurra-o para dentro. “Olha para a frente/ por uma escotilha,/ só vê sua própria/ paisagem marítima.”

Embora a publicidade diga que as viagens nos jogam para o mundo, para fora, elas, ao mesmo tempo, provocam a introspecção. O passageiro mergulha em si e, nesse salto para dentro, é capaz de tudo. “Ergo/ uma catedral/ no vazio do ônibus”. Lê a Divina comédia, lê Virgílio, lê Emily Dickinson, está muito longe dali. Postado nesse abismo entre a realidade suarenta e o sonho, o poeta escreve.

O que busca enquanto escreve? “Busco centro/ nos círculos/ do meu mundo/ doméstico.” Só ali, estacionado dentro de si, consegue cavar sua própria condição. Sua condição de poeta. Diante de uma moça ensimesmada — que navega, em silêncio, em suas próprias recordações —, Juliano constata: “Não percebeu/ que era outra/ Nela emergira/ um gesto que/ a Emily/ pertencia”. Só a introspecção nos dá acesso a essa dimensão da vida em que os limites se rompem, as eras se embaralham, e as fisionomias explodem. Em meio a essa agitação, constata Juliano: “Ao fim do dia,/ (…)/ brotará,/ a benção de um/ enigma”.

Quando estamos de passagem, quando não nos fixamos ou nos apegamos a nada, só quando estamos livres — em trânsito pela vida, sem rotinas, sem compromissos — o enigma emerge. E o enigma — o mistério, o segredo — é o objeto nobre do poeta. A poesia não “dá aula”, não desenvolve, não argumenta, a poesia espanta e se espanta.

Juliano vive hoje em Cáceres, no Alto Pantanal, a 200 km da capital Cuiabá, onde dá aulas. A fronteira com a Bolívia está logo ali. Instalou-se, ele também, o homem Juliano e sua família, em uma fronteira entre duas culturas, em uma passagem. Ali recolhe suas memórias de passageiro. A seu lado, no ônibus, está um velho. Um homem em desalinho, em ruínas, o poeta descreve, um homem em desacordo consigo próprio. “O velho sentado ao meu lado/ vestido com a chusma/ de sua juba em ruína,/é um felino/ aprisionado pelo cansaço.” Sem forças, ao velho pouco resta além de resistir. Enquanto ele resiste, o poeta escreve — resistência também.

Ele observa o ancião. “Um mistério/ nele se realiza.” No velho, onde nada mais se espera, surge o enigma. Surge a coisa. Não, o mistério não está em montanhas remotas, ou em esferas impalpáveis. Está bem ali, incorporado em um homem solitário. Logo o velho se levanta e desce. “Ficaram suas sombras/ prensadas ao assento/ emborrachado.” Sombra do enigma, sombra da sombra. O ônibus é uma caixa de segredos, mas só o poeta vê isso.

A poesia se torna, assim, uma máquina de registrar. Escreve Juliano: “Na jornada diária,/ entre a casa e/ o trabalho/ abro/ a íris/ da memória”. O poeta vive “entre”. Não está nem aqui, nem ali, está no meio. É um passageiro, não só porque viaja de ônibus, mas porque se instala no intervalo invisível entre a vida e a invenção. Na noite profunda, enquanto volta para a família, o poeta busca uma facha de luz. “No aparente carvão/ liberar o permanente/ cristal.” Mais uma vez, persegue o que desconhece. Escreve: “Na noite escura peneirar/ o brilho de um enigma/ é o meu ofício”.

Observa, em torno, o ônibus lotado. Os passageiros se espremem. Quase não sobra espaço, mal se pode respirar. “E toda essa gente,/ entre migalhas,/ fiapos/ e ninharias,/ se enlata para chegar/ aonde.” A que destino? A que vida? O poeta se pergunta: “Será o quê/ essa gente enlatada?” Ali, no aperto, imóvel, submissa, ele diz, é uma gente que “cisca a si mesma”. Cisca, para se limpar de quê? Busca, em meio à repetição, um tesouro. Cisca a si, “cavando no/ invisível oculto/ o fruto”. A silhueta da substância cristalina, o poeta descreve. O próprio enigma. Mas como chegar ao que sempre se esquiva? Como amordaçar um enigma?

Daqueles destroços de máquina e de gente, Juliano precisa fazer alguma coisa. “Agora quero/ reinventar a sucata”, diz. “Por minha dor/ no maquinário de palavras.” E chega, assim, a uma palavra: “levitação”. Flutuar, voar, elevar-se: eis a única saída para um poeta. Ali espremido, ele toma consciência de que nada somos. Defronta a insignificância do humano. “O sideral espaço/ é a real medida do drama/ por nós encenado.” Em contraste com o cosmos, nada somos. “Grão de poeira é o que somos/ na fina relojoaria que gira/ planetas em sua trilha/ e gera imensidão/ ao quadrado.”

Desse “nada somos”, Juliano Moreno faz poesia. Uma poesia filosófica, sem conceitos, sem princípios, sem palavras. Assim também, com o silêncio, ele se despede do passageiro sentado a seu lado. “Na transparência/ da janela, eu/ e o desconhecido/ sem palavras nos/ despedimos.” O enigma está além da palavra. O enigma vai com o homem que parte. Só o silêncio dele se aproxima. Só o voo para além do real. “Em seu espaço projeto o pensamento/ ligo a máquina de levitação.”

Erguido sobre si mesmo, o poeta se defronta, enfim, com o silêncio. “Pequenas vias estreitas/ nos levam a paisagem/ sem escritura.” Sem escritura, mas com poesia. Juliano Moreno chega, assim, ao projeto da poesia: escrever aquilo que não se deixa escrever.

Passageiro interior
Juliano Moreno
Entrelinhas
120 págs.
José Castello

É escritor e jornalista. Autor do romance Ribamar, entre outros livros.

Rascunho