Assisto, pela plataforma Zoom, à montagem de A peste, romance de Albert Camus, encenada por Pedro Osório, com direção de Vera Holtz e Guilherme Leme. Acompanho assombrado. O desempenho de Pedro, na pele do doutor Bernard Rieux, é impecável. Fúria, indignação, raiva, emoções radicais espremidas na pequena tela do Zoom, que o ator captura através de um simples celular.
Os críticos, sempre cheios de pudores, se perguntam: podemos chamar isso de teatro? É teatro, não é teatro — o que isso realmente importa? Antes da pandemia, Pedro Osório encenou A peste, com grande sucesso, durante mais de dois anos. A montagem no palco, também imperdível, está disponível no YouTube. Mas é ainda mais espantoso o trabalho que o ator consegue fazer no Zoom. Escondidos nos bastidores, Vera e Guilherme são dois bruxos.
Pedro Osório está sozinho na sala de seu pequeno apartamento, em Petrópolis. Veste um jaleco branco, de médico, e tem a seu lado uma máscara de proteção, um pouco assustadora, que ele usa no início e depois no fim do espetáculo. Isso basta para que ele se transforme em Rieux. Há um pequeno abajur aceso ao fundo. Uma porta trancada. Às vezes, seu cachorro — batizado Camus —, preso no quarto ao lado, late. É tudo muito simples. Muito vivo. É tudo inacreditável.
E, no entanto, desse quase nada, Pedro Osório arranca um grande trabalho. Que se torna maior ainda agora que nós também — e não só os habitantes de Oran, na Argélia, onde o romance de Camus se passa — vivemos nos braços negros da peste. “O bacilo da peste nunca morre ou desaparece inteiramente.” A Covid-19 é mais uma prova disso.
Não se trata só de um vírus, mortal e sedicioso. Em torno dele, uma segunda peste se alastra. Os sinais se acumulam, e não só em nosso país: o nacionalismo exacerbado, o fanatismo religioso, a obsessão pela segurança, o ataque aos direitos clássicos, o desprezo pela cultura e pelas artes. A peste tem muitas formas. Várias delas hoje nos envolvem. Nesse ambiente empesteado, o trabalho de Pedro Osório ganha ainda mais força. Peste dentro da peste. Horror dentro do horror. A arte surge nas frestas de um celular. Frágil, mas densa, ela vem nos salvar.
É a partir do medo, mostra Camus, é fazendo alguma coisa dele que chegamos à reflexão. A inquietação e a insegurança nos levam ou ao desespero, ou ao pensamento. Só o pensamento nos abre um caminho. O desespero tranca todas as passagens. Daí a potência que vemos na figura do doutor Rieux, o protagonista de A peste. Diante do horror, a fúria. Rodeado de seres que agonizam, lutando contra a morte, fazendo tudo o que pode ainda que não seja muita coisa, ele mantém a indignação.
Muitas vezes, para enfrentar o horror, o doutor Rieux precisa da indiferença — precisa daqueles momentos em que “o coração se fecha sobre si mesmo”. Sua mulher está fora de Oran, internada em uma clínica médica, onde se trata de uma doença grave. Mas Rieux se abstrai — quase não tem tempo para pensar nela. A peste nos pede, às vezes, uma frieza monstruosa. Ainda assim, não podemos perder a doçura. Só o afeto nos salva.
Oran está isolada. Ninguém entra, ninguém sai. No interior da clausura, muitas vezes, só a abstração salva. É preciso fazer o que deve ser feito — sem vacilar, sem negacear, e até mesmo sem se emocionar. Ainda assim, em algum canto oculto dentro de nós, a emoção ferve. Prático, frio, obstinado, é essa emoção secreta que, no fim das contas, move também o doutor Bernard Rieux.
Lutar conta a peste — ou contra as pestes — é lutar contra a morte. É a luta de um Sísifo: subir, subir sem parar, empurrando a imensa pedra, mesmo sabendo que, depois disso, ela rolará e teremos que começar tudo de novo. É preciso insistir. A peste ameaça o poder do amor, porque o amor exige um futuro, mas, aprisionados na desgraça, só temos o instante. Prisioneiros do instante, sufocamos o amor em algum canto remoto de nosso peito. Mas ele continua lá. Basta observar a obstinação de Rieux.
Admite o doutor, em dado momento: “Eu sinto mais empatia pelos vencidos do que pelos santos”. Os santos querem a perfeição, mas a vida é imperfeita, será sempre imperfeita, e a luta contra a peste é interminável. Ela permanecerá à espreita, nos vãos, nas fendas, nos becos. Teremos que estar sempre alertas. “O que me interesse é ser. É ser humano”, nos diz o doutor Rieux. O humano carrega em seu bojo a imperfeição. Na verdade: a imperfeição o constitui. Mais ainda: a imperfeição é o próprio humano, movimento puro, inconstância, instabilidade, oscilações furiosas que só podem ser atenuadas pela ternura.
O doutor Bernard Rieux que nos chega através do Zoom é um homem comum. Mas que, justamente por isso, reúne em si todas as imperfeições do humano. O celular que Pedro Osório usa como instrumento não passa de uma janela. Uma estreita abertura através da qual ele surge. Só um rosto, forte, desafiador, cheio de coragem. O olhar fixo que Pedro mantém durante toda a apresentação remete a um transe. Mas quem está em transe? Ele, o ator Pedro Osório, em sua encarnação de Rieux? O médico, Bernard Rieux, em sua luta feroz contra a morte? Ou nós que, perplexos, os encaramos?
É mais inquietante ainda assistir a peça A peste na situação de isolamento em que hoje vivemos. Nós, também, estamos trancafiados, nós também somos prisioneiros. Cada casa, uma Oran. Talvez não existam muros, mas há sempre uma porta fechada, uma tranca, um limite que não podemos ultrapassar, sob pena de morrer. Também nós usamos máscaras que, se nos protegem, e protegem, também nos escondem. Estamos vivendo tudo aquilo. Estamos no palco — mesmo que não exista um palco. Estamos “dentro” do livro de Albert Camus.
A montagem de A peste nos sacode. Permanecemos acordados. O grande risco, talvez maior que o da peste, é a indiferença. A miséria se espalha. O horror nos cerca. Mas não podemos nos contaminar pela anestesia. Devemos manter os olhos abertos e bem fixos, exatamente como Pedro Osório faz diante de seu pequeno celular. Seu olhar é o nosso olhar. Para isso serve a arte: para nos devolver a nós mesmos. Traz de volta o melhor, mas traz também o pior. Traz tudo o que somos.