Espero um Uber na calçada da José Loureiro, no centro velho de Curitiba. Não tenho pressa. Basta pensar que não tenho pressa e um senhor baixinho, de paletó e colete grossos, se aproxima. “Agripino às suas ordens”, ele me diz — como se estivéssemos em uma churrascaria, onde ele servisse de maitre.
Meu leitor já não se assusta com meu hábito — talvez vício — de conversar com estranhos. “Não fale com estranhos”, meu pai dizia, no entanto sempre fiz ao contrário. Mais do que conversar, com meu prazer de escutar estranhos. Suas aparências nebulosas e discrepantes me atraem. Carregam segredos e ninharias que me atiçam. Lanço-me em seu mundo, como se penetrasse a órbita de Plutão.
O senhor Agripino, sem dúvida, é um estranho. Eu o observo. Observo e me lembro que Freud via o estranho como o recalcado, aquilo que poderia aparecer na forma do duplo, ou do sobrenatural. É isso: o velho é uma aparição. Veio dos subterrâneos — é contemporâneo de Dostoievski. Em dias normais, também eu não daria atenção ao senhor Agripino. Eu o recalcaria. Eu o comprimiria contra o muro das repetições e veria nele só mais um.
Mas o senhor Agripino não é mais um e aqui começam seus problemas. Agora que o analiso melhor com meu olhar freudiano de pastelaria, vejo que, no fundo de suas feições de labrador, ele carrega alguma coisa que mais ninguém tem. Algo que só ele, o senhor Agripino, tem, e esse algo faz dele o homem que ele é. O inconfundível Agripino. Mas afinal quem ele é?
“O que o senhor deseja?” — pergunto, tomando, eu agora, a posição de mordomo. Como os judeus e os psicanalistas, ele me responde com outra pergunta: “O que o senhor faz na rua a essa hora?”. É início da tarde, o centro da cidade está cheio, não passo, eu também, de mais um. “Espero um Uber”, respondo, e logo depois trato de cancelar o pedido. Algo me diz que devo escutar o senhor Agripino. No fundo de sua lentidão e de sua sonolência, lá bem no fundo de suas olheiras, existe alguma coisa que ele precisa me dizer. E que eu preciso ouvir.
A primeira questão é: por que fui o escolhido? Por que eu, e não essa senhora barriguda que, atrás de mim, observa a vitrine de uma ótica? Por que eu, e não o rapaz descabelado que, aos berros, chama clientes para as promoções de seu açougue? A pergunta verdadeira talvez seja: o que o senhor Agripino vê em mim?
Contudo, a força do hábito me leva a inverter a pergunta. A questão mais verdadeira talvez seja: o que eu vejo no senhor Agripino? Ou talvez ainda: quem eu vejo? De súbito, me atravessa a mente a figura longínqua do escritor José Agrippino de Paula, o autor de PanAmérica, romance esquecido de 1967. Mais esquecido do que PanAmérica, só mesmo o próprio José Agrippino. Eu já nem me lembrava que me lembrava dele.
Pesquiso: José Agrippino de Paula faleceu em 2007, aos 70 anos. Depois de uma década de sucesso, quando foi um destaque da contracultura brasileira, Agrippino — o escritor José Agrippino, e não o senhor Agripino — simplesmente desapareceu. Estivesse vivo, teria hoje quase 90 anos. Talvez a imprudência me autorize a imaginar que, estivesse vivo, ele poderia ser o senhor Agripino, que agora me observa de boca aberta e dentes amarelos.
Preciso lhe dizer alguma coisa, pois o velho espera isso de mim. “Entrou um vento frio, não é? O senhor está bem agasalhado?” Antes ficasse quieto. Diante de meu comentário desprezível, o senhor Agripino dá um suspiro e parece prestes a pegar no sono. Ou a desistir de mim. Mas não desiste. “O senhor não me disse o que faz na rua a essa hora”, ele insiste. Disse sim, que esperava um Uber — que não espero mais —, mas não é disso que se trata, só agora entendo. Parece que ele fala mais de minha imprudência, até porque sou quase tão velho quanto ele. Dois velhos que se expõem à crueldade de uma cidade gelada.
Não respondo. Limito-me a observá-lo e, enquanto o observo, volto a pensar em José Agrippino de Paula. Depois do sucesso nos anos 70, foi empurrado para o desterro. Acabou se isolando em um sítio no Embu, no interior de São Paulo. Que se saiba, não escreveu mais. Ouvi dizer — mas as pessoas dizem coisas horríveis — que enlouqueceu. Deixou mais um romance, Lugar público, de 1965. Deixou, ainda, uma peça teatral, As nações unidas, de 1968, que foi censurada pelo regime militar. Deixou seu silêncio.
Estranho como, em uma certa medida, as pessoas são intercambiáveis. Não tivesse se mudado para o Embu, e tivesse preferido Curitiba, José Agrippino de Paula, o escritor, poderia, muito bem, estar agora à minha frente. Estranho como o acaso nos empurra para lá e para cá, imitando a ventania que faz o senhor Agripino balançar. Por acaso, nos embarramos na calçada. Por acaso, ou vício, me pus a conversar com ele. Tudo aos tropeções. Nada é certo, tudo é traiçoeiro.
“Bem, vou andando”, digo. Mas eu sei: já não posso mais escapar. “Se me permite, caminharei algumas quadras a seu lado.” O senhor Agripino já não é uma pessoa, tornou-se uma síndrome, como a de Burnout, ou a de Menière. Não passa de um conjunto de sinais incompreensíveis que agora bloqueiam meu caminho. Jamais decifrarei o que o senhor Agripino tem a me dizer — se é que ele tem algo a me dizer. Provavelmente nada tem a me dizer e isso é o mais grave.
Resolvo ser direto: “O senhor deseja me dizer alguma coisa?”. Espanta-se. Chega a vacilar sobre as pernas fracas, empurradas pelo vento. Espirra. Enfim diz: “Não quero lhe dizer nada”. Só quer minha companhia. Tudo o que deseja é ter a impressão de que alguém caminha a seu lado. E esse alguém sou eu. Isso bastará para que se sinta vivo.
Penso na solidão do escritor José Agrippino de Paula em seu sítio no Embu. Na solidão cruel em que ele morreu. Ao menos, tinha seus livros a que se agarrar. E o senhor Agripino, que nada tem além de uma gripe? E o velho, que mal consegue segurar seu cachecol? Olho em volta e entendo que as ruas estão cheias de Agripinos. O mais grave: eu mesmo não passo de um Agripino que se finge de exceção.