Meu pai embora esteja morto

Após 40 anos, o encontro com um misterioso homem num café liberta um passado de silêncios
Ilustração: Eduardo Souza
01/02/2023

Entro em um café da Domingos Ferreira, a poucos passos do prédio em que nasci. Enquanto espero pela garçonete, observo o salão. Nele, não sei se aturdido pela presença do passado, ou se hipnotizado como no expressionismo, vejo, curvo e abatido, meu velho pai, Ribamar. Meu pai morreu em 1982, lá se vão mais de 40 anos. No entanto, eu não tenho dúvidas: é ele.

Veste bermudas antigas, uma camisa social branca e uma jaqueta jeans amarelenta que, pelo que me recordo, eu mesmo lhe dei. Parece tranquilo e dono de si: o desamparado, o infeliz, o sem pai sou eu.

O problema é que meu pai morreu em 1982. No entanto, eu não tenho dúvidas: é ele quem está diante de mim. Se morreu há mais de 40 anos, estou diante não de meu pai, mas do espectro de meu pai. Eu mesmo ajudei a fechar seu caixão, porque a tampa emperrava, e o coveiro não conseguia lacrá-la sozinho. Eu mesmo joguei sobre ele algumas flores brancas — meu pai não admitia flores que não fossem brancas.

Ele toma seu café lentamente, como um menino preocupado em não se sujar. As mãos tremem, mas meu pai, com toda a atenção concentrada na xícara, hirto e solene como se fizesse um perigoso experimento científico, se equilibra e não se molha.

Está bem mais velho do que a última vez que conversamos, já em seu leito de hospital, na véspera de sua morte. É natural, quatro décadas se passaram. É natural, mas esse é o problema: o homem que vejo e que toma o lugar de meu pai não pode ser meu pai. Mas, se não é meu pai, já que não acredito em fantasmas, quem é ele? O que pretende o falsário que, bem à minha frente, se passa por José Ribamar, meu pai?

Começo a tremer, não sei se de raiva ou medo. Ocorre-me então a famosa frase que Bergman anotou em sua autobiografia: “Trago dentro de mim um contínuo tumulto que é preciso vigiar”. Preciso enxotar as fantasias e me manter atento. Tanto quanto não sou Ingmar Bergman, o cineasta dos fantasmas, aquele farsante também não pode ser meu pai. E isso é tudo.

Pensando melhor, ele devia estar bem mais velho, bem mais acabado do que está. Traz o olhar parado — olhar de um morto, ou de um pensador. Em um reflexo, noto que as pupilas negras se dissolvem na face enrugada. Olha fixamente para a frente, mas à sua frente há apenas uma mesa vazia e, logo atrás dela, uma parede suja. Na cadeira ao lado, acomodou uma valise. De repente, sem terminar o café, pede a conta e se prepara para ir embora.

Não consegue se levantar sozinho. Pede, então, a ajuda da garçonete, que o ampara com delicadeza e depois o leva até a porta. Desaparece na direção do prédio em que eu nasci e em que vivemos juntos por mais de 20 anos. Estará voltando para casa? É só isso?

Algo me trava a garganta. A verdade, ou a estupidez? Então meu pai, mesmo morto, continua vivo? Talvez não passe de um duplo. Um sósia, como nos filmes de terror. Um farsante. Só uma coincidência, como tantas em que tropeço. Nenhuma das hipóteses, porém, me convence. Não tenho dúvidas de que é meu pai, ele mesmo, bem vivo embora esteja morto.

Também não é um fantasma. Enquanto se erguia e ajeitava a jaqueta, percebi que algumas gotas do café macularam a camisa branca. Deixou também farelos de torrada sobre a mesa. As pistas que confirmam sua existência estão por todos os lados. A garçonete o amparou até a porta — e garçonetes não aparam fantasmas.

Foi na direção do prédio em que vivemos. Edifício Osvaldo Moura Brasil do Amaral. Quem terá sido esse homem? Meu pai dizia que ele era médico, mas talvez não passe de um espectro também. Só uma ilusão. Tudo é ilusão — mas essa ideia também não explica coisa alguma, também é uma ideia fantasma.

Agora que meu pai se foi, preciso voltar à sensatez medíocre dos dias. À claridade da vida, em que os mortos estão mortos e os vivos estão vivos, e isso basta, e isso explica tudo. Mas onde estão as forças para prosseguir? Tive a chance de dirigir a palavra a meu pai, meu saudoso pai, com quem sempre tive imensa dificuldade de conversar. E, mais uma vez, não fiz isso. Falhei de novo. Sou um filho fracassado.

Pago, me levanto e caminho na mesma direção em que meu velho pai se foi. Agora eu também o duplico. Sigo-o sem saber por que o sigo, até porque não o vejo mais. Eu me atraso e falho mais uma vez. Qualquer pergunta que eu lhe tivesse feito romperia o abismo que separa e gruda o presente e o passado. Isso seria perigoso e poderia talvez alterar minha história, como acontece nos filmes de ficção científica. Poderia alterar a ordem das coisas mas, na miséria em que me encontro, não seria mau.

Enfim eu o vejo, lá vai o velho, bem lá na frente, como terá corrido tanto? Já na avenida Copacabana, vejo-o de novo, entrando na Galeria Menescal. A imagem da galeria me remete a O crocodilo, a novela de Dostoievski que reli recentemente. Haverá, nela também, um monstro em exibição? Será ele capaz de decifrar o enigma em que me meti? Se chegarmos a conversar, ele descobrirá que o monstro sou eu? Enquanto ele, solitário, é só um velho que passeia.

Passo pela sapataria da entrada, pela loja de brinquedos, pela lanchonete árabe. Uma loja de bijuterias. Uma camisaria antiga. Um bistrô de doces portugueses. Distraio-me diante dos doces e logo me dou conta de que perdi de novo o velho. Será que foge de mim? Faria sentido para um espectro, mas não faz sentido algum para meu pai, que nunca foi homem de se esconder.

Assim que chego à Barato Ribeiro, mais uma vez eu o vejo. Agora está parado sob uma marquise e abre sua valise de papelão. Só ali, quando enfim eu o encaro, descubro que meu pai usa uma longa barba, que nunca usou. Mas é ele, ainda sei que é ele.

Da mala, tira primeiro uma pilha de jornais, que estende em um canto da calçada. Tira ainda um cobertor velho, que estica sobre eles. Por fim, do fundo, o homem que já não sei se é meu pai arranca, ainda, algumas folhas de papelão, com que constrói as laterais de seu leito.

Despe a jaqueta e a enrola como um travesseiro. Deita enfim com modos solenes e se põe a coçar a barba. Logo está de olhos fechados. Talvez, só agora, mais de 40 anos depois, esteja realmente morto. E, no entanto, ele continua a respirar.

José Castello

É escritor e jornalista. Autor do romance Ribamar, entre outros livros.

Rascunho