Memórias de um ladrão

Dos cinco livros que mais marcaram minha formação, dois foram roubados. Sim, eu não os comprei, ou ganhei de presente, eu os roubei
Ilustração: Aline Daka
21/09/2020

A pedido do escritor Jonatan Silva, analista de Literatura do Sesc, escrevo a lista dos cinco livros que mais marcaram minha formação. Diante da lista pronta, tomo um susto: dois dos cinco livros foram roubados. Sim, eu não os comprei, ou ganhei de presente, eu os roubei. Para me livrar da indisposição que essa lembrança produz em mim, venho aqui confessar meus pequenos crimes.

Aos oito anos de idade, roubei meu primeiro livro. Um exemplar do Robinson Crusoe, de Daniel Defoe, editado pela Organização Simões, do Rio de Janeiro, em 1952. Eu o encontrei na pequena biblioteca de minha Tia Enyci. Podia pedir o livro emprestado, ela me emprestaria sem vacilar. Mas eu não queria um empréstimo, eu queria tê-lo para mim. Então, levado por um impulso que nunca sentira antes, trêmulo como um assassino, eu o enfiei dentro de minha camisa e o levei para casa.

Meu roubo, sou obrigado a dizer, valeu a pena. A leitura do Robinson Crusoe marcou minha vida. Posso dizer até que, de certo modo muito íntimo, eu nasci enquanto o lia. Li o romance de Defoe, pela primeira vez, na varanda da casa de veraneio que meus pais tinham em Teresópolis, na montanha. Eram as férias de verão. Lembro que o li deitado em uma rede nordestina que meu pai trouxera do Piauí. Seria mais correto dizer: afundado na rede, nela mergulhado, como um fugitivo.

Logo me identifiquei com a história daquele náufrago que é obrigado a viver em uma ilha remota, sozinho, onde deve reconstruir sua vida a partir dos destroços de um navio. Renascer a partir do nada. Do zero. Aos oito anos de idade, eu era um menino tímido, arredio e, sobretudo, muito solitário. Também eu me sentia um náufrago. Logo me vi em Robinson, logo nele encontrei um espelho em que me amparar. Através do livro, enfim, cheguei a mim. Enfim, cheguei ao que sou.

Acabei perdendo meu velho exemplar do Robinson Crusoe. Mas não — talvez não seja exatamente isso. Muitos anos depois, no fim da década de 1990, já vivendo em Curitiba, reencontrei-o em um pequeno sebo do centro. Admito: não há no livro nenhum sinal, ou indício, de que ele seja o mesmo que me pertenceu. Também é inquietante a hipótese de que ele tenha me seguido até o Paraná. Na primeira página, há uma breve anotação, a lápis e muito apagada, em que consigo ler uma data: 27/3/52. Acima dela, um nome, ilegível. Talvez seja Alfredo, mas não estou certo.

Nada disso me deteve. Fui ao caixa e, trêmulo, comprei de volta meu livro. Sim, dessa vez eu paguei, e não roubei. Decidi então — simplesmente porque decidi, sem nenhum outro motivo, agindo agora como um ladrão de sentidos — que este “é” o livro que me pertenceu. O livro amado que, tantos anos depois, voltou até mim. E aqui está ele, a meu lado, me vigiando. Sim, é ele sim, agora tenho certeza.

Meu segundo roubo aconteceu dez anos depois. Aos 18 anos de idade, ainda vivendo com meus pais em Copacabana, encontrei, na biblioteca de minha falecida irmã, Sandra, um exemplar de A paixão segundo G. H., de Clarice Lispector. Um exemplar da primeira edição, da Editora do Autor, de 1964. Um exemplar numerado — o meu traz o número 0240. Nunca tinha lido Clarice. A capa rosa, devo admitir, me provocou uma mistura de repulsa e confusão. Ela, indicava, eu imaginei, uma “literatura para moças”.

Uma rápida folheada no livro, sem grande interesse e esperança, no entanto, me fisgou. Já na abertura, o romance, que começa com seis travessões, me perturbou. “estou procurando, estou procurando”, Clarice escreve logo depois dos travessões iniciais. Muito perdido, sem saber que rumo dar à minha vida, naquele momento também eu procurava. Não sabia o que, mas procurava.

E aí encontrei G. H. Naquela época, tinha o hábito de passar as tardes no Jardim Botânico do Rio de Janeiro. Caminhava sozinho, entre as árvores imensas e, de vez em quando, sentava-me para ler. Ao longo de muitas tardes, indo e voltando assombrado pelas alamedas do jardim, eu li meu primeiro livro de Clarice. Logo que terminei a leitura de G. H., porém, adoeci. Uma febre violenta, calafrios, um cansaço forte. Meus pais estavam em viagem. Minha avó Iracema chamou um médico. Doutor Wangler, ele se chamava. Um senhor de cabeça muito branca, elegante em seu paletó com gravata, distinto e silencioso. Ele me examinou longamente, com delicadeza e cuidado. Depois disse para minha avó: “Não se preocupe. Vai passar. É só uma paixonite”. Não sei como, mas o doutor Wangler “leu” A paixão segundo G. H. em meu corpo. Eu sofria de uma paixão pelo livro que li.

Meu terceiro roubo foi mais dramático. Aconteceu em 1972, quando eu ainda era um estudante. Sempre com pouco dinheiro, entrei na Livraria Leonardo Da Vinci, no centro do Rio — um lugar quase sagrado, que eu voltava sempre a visitar. Os livros eram importados, e por isso muito caros. Eu ia à Da Vinci para só folheá-los e para sonhar. Um dia, esbarrei com um livro de Michel Foucault que me chamou a atenção. As palavras e as coisas parecia conter muitos segredos. Dei voltas pela livraria, fucei as prateleiras, mas sempre voltava ao livro de Foucault. Até que, num ímpeto, resolvi roubá-lo.

Não o escondi: simplesmente o peguei, coloquei-o sob o braço como se fosse meu, e saí. Subi a Avenida Rio Branco a passos largos. Duas ou três quadras depois, um homem me agarrou pelas costas. Era o segurança da livraria. Limitou-se a dizer que eu devia segui-lo. De volta à Da Vinci, Dona Vanna, a antiga proprietária, uma mulher com ares de grande atriz, me recebeu. Depois de ouvir o relato do segurança, para meu espanto, limitou-se a me perguntar: “Você se interessa pelas ideias do Foucault?”

Quis saber que livros eu lia, se tinha o hábito de escrever, o que achava de Michel Foucault. No fim, muito calma, ela disse: “Sinto que você precisa desse livro. Eu faço questão de lhe emprestar. Quando você terminar de ler, me devolve”. Não consegui aceitar seu empréstimo. Só conseguia dizer: “Não posso aceitar, muito obrigado, não posso aceitar”. Largando o livro sobre a mesa da gerência, tratei de sair, com passos largos de fugitivo. Anos depois, li muitos livros de Michel Fouacult, mas nunca consegui ler As palavras e as coisas. O livro é, até hoje, um vazio que trago dentro de mim.

José Castello

É escritor e jornalista. Autor do romance Ribamar, entre outros livros.

Rascunho