Li outro dia no Prosa Online que uma pesquisa recente mostrou que a emoção anda banida da ficção contemporânea em língua inglesa. Como todos sabem, é a ficção em língua inglesa (tanto britânica como norte-americana) que, hoje, dá as cartas no mercado literário internacional. Na Índia, no Paquistão, na África do Sul, na Espanha, no Brasil, quase todos agora desejam escrever “à inglesa”.
Conversava sobre isso, outro dia, com um amigo, o jovem escritor Luís Henrique Pellanda — um dos que se recusam, firmemente, a seguir a receita do momento. Surgiu uma nova norma internacional. Um padrão de qualidade, nivelado pelo meio, e que se transforma em um adestramento, ele reclamava. Escrever “à inglesa” — mas não à maneira de Virginia Woolf, por exemplo. (Já nem vou pensar em Joyce…) Isto é: escrever friamente — e Virginia, por certo, estaria horrorizada. Eis aqui um projeto que pode se tornar letal para a ficção. Que pode enquadrá-la e empacotá-la, como se narrativas fossem objetos pré-moldados.
Para me distanciar desses tempos áridos, para tomar um pouco de fôlego e de consolo, sempre me apego à poesia. Há um poema, um sutil poema de catorze versos, a que sempre volto. Um poema que, há muitos anos, me alimenta — como uma refeição delicada que nunca terminasse. Falo de Silêncio, da poeta norte-americana Marianne Moore (1887-1972). Poema que, volta e meia, releio na antologia bilíngüe traduzida por José Antonio Arantes, publicada em 1991 pela Companhia das Letras. Quando o releio, em meu livro empalidecido e cheio de dobras, me pergunto o que me prende, de fato, a esses versos. Por que retorno? Por que eles não me largam? Em minha velha edição, que ganhei de presente do editor e amigo Luiz Schwarcz, dois versos, que sublinhei em lilás, guardam, talvez, uma chave. Dizem: “O sentimento mais profundo sempre se mostra em silêncio;/ não em silêncio, mas contenção”.
Falam, eu penso, da própria relação que tenho com o poema de Marianne. Neles se esconde a chave do que procuro — ainda que não saiba o que procuro (ignorância que, aliás, define a literatura). Venho escrever este texto na esperança de me aproximar um pouco mais desse segredo pessoal. Segredos sempre ajudam a nos aproximar do mundo. E a nos afastar do mar de repetição e medo que hoje o encobre. O poema começa assim: “Meu pai costumava dizer:/ ‘Gente superior nunca faz visitas demoradas,/ nem a ela tem que se mostrar o túmulo de Longfellow/ ou as flores de vidro em Harvard’”. Uma enciclopédia literária me ajuda: Henry Longfellow foi um poeta e educador do Maine, autor da primeira tradução americana da Divina comédia, de Dante.
Quanto às flores de vidro do artista Leopold Blaschka, o Google me auxilia: são um dos pequenos tesouros do Museu de História Natural de Harvard, onde nunca estive. Em resumo: Longfellow e as flores de Harvard são como aquela jóia rara (e cara) que temos o prazer de exibir às visitas. Mas para que, de fato, exibi-la? Por que esse impulso para o brilho e para a confirmação?
Não: não é bom ceder a essas tolas vaidades, afirma (no poema) o pai. Elas são perigosas: a superfície nos afasta de nós mesmos. Marianne Moore, a autora de Silêncio, foi também uma mulher contida, que se vestia austeramente, os cabelos sempre curtos, os pequenos olhos negros perfurando a face branca como sinais de alerta. Alerta a respeito de quê? Uma luz obscura deles escorria. Sinalizavam, talvez, sua atenção desmedida para com o mundo, cuidado que ela continha em seu discreto semblante e do qual arrancou a beleza de sua escrita.
Detenho-me um pouco e salto para o fecho do poema, que se relaciona com seu início. Está escrito: “Nem era insincero ao dizer: ‘Faça de minha casa sua pousada’/ Pousadas não são residências”. Tanto os versos iniciais quanto os finais — ambos erguidos sobre a memória de um pai — falam da necessidade de uma repressão, ou pelo menos de uma restrição.
No caso, como se expressa nos versos que sublinhei, retenção sobretudo das próprias palavras. Vivemos no mundo da fala solta, da escrita hemorrágica, das inconfidências públicas e fórmulas desdobráveis. O silêncio como um instrumento mais potente que a voz. O silêncio como maneira mais firme para dizer e guardar. O silêncio como o verdadeiro grito. Passo a maior parte do dia sozinho, trabalhando em meu escritório — em silêncio, portanto. Contudo, tanto quando leio como quando escrevo, as palavras fervem dentro de mim. O poema de Marianne me leva a pensar no quanto o silêncio é ruidoso, no quanto ele transborda em significados.
Por contraste, penso no quanto o barulho do mundo contemporâneo (assim como esse grossos romances “ingleses” que brilham tagarelas nas vitrines) aposta, na verdade, na mudez. No quanto, tantas vezes, de tão excessivo, todo esse ruído não nos diz nada. Absolutamente nada. No caso das narrativas moldadas pelos padrões da moda literária: dizem sempre a mesma coisa, o que é não dizer nada também. É apenas ecoar.
Nada contra o mundo contemporâneo, muito ao contrário. Desde menino, amo o presente. Mas, justamente porque o amo, luto para conservar-me atento ao modo brusco, e tantas vezes desencorajador, como ele transcorre. Tudo tão perto, tudo tão longe. Precisamos, às vezes, de alguma espécie de lupa ou lente de aumento para observar seus detalhes. Aquilo que quase não aparece ou não se escuta.
Como se o presente — nosso frágil presente — guardasse de nós uma distância cósmica. Pois bem: a poesia é um instrumento (uma lupa) para observá-lo. Talvez por isso eu retorne com tanta freqüência à poesia de Marianne: para entender melhor onde estou. A poesia como lugar de resistência, não ao presente, que devemos viver, mas às máscaras que o encobrem.
Volto a dizer, porque isso me assustou mesmo: li outro dia no Prosa Online, decepcionado, que uma pesquisa mostrou que a emoção anda banida da ficção em língua inglesa. A palavra de ordem, hoje, na “literatura internacional” é escrever “profissionalmente”. O grande risco: estarmos criando uma geração de executivos da literatura.
Não podemos, porém, confundir a frieza (ausência de emoções) com a contenção. Na primeira, elas são descartadas como nocivas ou inadequadas. Na segunda, são engolidas e nos alimentam, como um segundo coração. Eis aí: talvez nossos romancistas pragmáticos devessem ler os versos de Marianne. Indo mais longe: talvez precisem ler mais um pouco de poesia. Vinicius de Moraes dizia que a poesia devia contaminar o mundo. Estava certo em seu improvável diagnóstico. Pode parecer estranho que um prosador necessite dos poetas para continuar dono de si. Mas não é. No centro da grande ficção, daquela que realmente interessa, no coração daqueles escritores que escrevem por sua conta e risco (Virginia Woolf, Marianne Moore, Vinicius de Moraes), e não para seguir tendências, guarda-se sempre — lembremos de Marianne — um silêncio ensurdecedor. O silêncio daqueles que, em vez de repetir, preferem o risco de pensar.
Aqui me volta uma idéia de Maurice Blanchot, que arranquei de uma leitura de seu A conversa infinita. Defende Blanchot a diferença como elemento crucial da escrita. Repetir, em definitivo, é macaquear, não é escrever. Diz Blanchot: “O traço da escrita não será portanto nunca a simplicidade de um traço capaz de se traçar confundindo-se com seu traço, mas a divergência a partir da qual começa sem começo a perseguição-ruptura”.
Escrever — como nos mostra Blanchot, como nos mostram os poemas de Marianne — não a partir da cópia, da fórmula, da “facilidade”. Não a partir da “execução” — como nos gabinetes de burocratas e nos escritórios refrigerados. Escrever a partir do desvio, da divergência, da ruptura: escrever não para desaparecer, mas para ser. E ser não é repetir, ser é arriscar-se. É o risco, enfim, que pode salvar a literatura de seus mercadores e dos escritores que a eles se submetem.
NOTA
O texto Marianne Moore hoje foi publicado no blog A literatura na poltrona, mantido por José Castello, colunista do caderno Prosa, no site do jornal O Globo. A republicação no Rascunho faz parte de um acordo entre os dois veículos.