Maneiras de existir

A entrada de um menino esfarrapado num restaurante desmancha o mundo de perucas e de poses
01/11/2023

A fome aumenta, entro no primeiro restaurante que encontro. Fica logo após o lance inicial das escadas rolantes. A porta, envergonhada, se esconde atrás de uma coluna. Ao meio-dia, o salão está vazio.

Pouco depois de me acomodar em uma mesa, entra uma senhora de peruca dourada. Anda com alguma dificuldade, usa uma bengala com cabeça de cavalo, mas mantém o queixo erguido das bailarinas. Tenta disfarçar a papada que, revoltosa, se derrama sobre o colar de pérolas.

Instala-se na mesa a meu lado. Dou boa-tarde, ela não responde. Afasto minha sacola, que se esparramava sobre o sofá, para que se acomode melhor, não agradece. Eu não existo. A velha de peruca faz questão de enfatizar: não sou ninguém. Talvez seja um desocupado. Talvez nem um homem seja.

Escolho um contrafilé com arroz negro. Quando meu prato chega, a velha faz cara de nojo. Eleva ainda mais o queixo, assinalando sua superioridade sobre um pobre carnívoro. Escolheu uma quiche vegetariana com salada. Acomoda o guardanapo sobre o peito imenso, embora murcho. Mastiga com seu bico de pássaro. É intolerável.

A cada garfada, parte da peruca se derrama um pouco. Antevejo um desastre, que infelizmente não acontecerá. Percebo claramente que, sem nenhum motivo, eu já odeio a velha. Envergonho-me de meu sentimento irracional, mas eu o sinto. Cada vez mais forte.

Trato de me concentrar em meu contrafilé e esquecer de minha companheira de mesa. Até que, com um olhar assustado e a camisa rasgada, um garoto entra no restaurante. Deve ter seus 13 ou 14 anos. O calção escorrega pelos quadris. Está descalço. As unhas estão amareladas. Pergunto-me como conseguiu atravessar a barreira dos seguranças.

O menino fica parado no meio do restaurante. Ato contínuo, a velha agarra sua bolsa. A peruca balança. A papada de gelatina está inquieta. O bico de pardal se tranca. Os garçons, indiferentes, continuam a passar com suas bandejas. Nas outras mesas, os clientes mastigam e conversam.

“O senhor vê o que eu vejo”, a velha enfim me pergunta. Se me pergunta, eu existo. Essa constatação não deixa de me aliviar. Ainda assim, considero que talvez não estejamos falando da mesma coisa, que talvez não estejamos vendo o mesmo menino. Eu a testo: “A senhora fala da garota que acaba de entrar?”.

Sinto prazer em desnortear a velha. Em enlouquecê-la. Ainda enfatizo: “Que linda menina”. Ela me observa de boca aberta. De onde vem tanta raiva? Qual a origem desse desejo de destruição? Mantenho, porém, a cara de homem educado e piedoso. Espero por sua resposta. Sigo o protocolo dos shoppings.

Sim, algo não me agradou na velha de peruca desde o primeiro momento em que a vi. Mas só por isso devo matá-la? Só porque não gostei do que vi devo exterminar o que vi? Quanto mais odeio a velha, mais eu me odeio. Um desconforto me sacode o espírito. Algo ou alguém precisa me deter, antes que o pior aconteça. Eu mesmo preciso me deter, mas não consigo.

Volto a examinar o menino. Parece mais calmo, ainda assim não se move. Uma estátua de carne no meio do salão. A velha continua muda. Uma garçonete apressada esbarra no garoto, nenhum dos dois se abala. O menino continua a inexistir, só a velha e eu o vemos.

Nunca ouvi falar de delírio compartilhado. Ou eu deliro, ou a velha delira, mas nós dois juntos? Um rapaz de terno negro aparece, enfim, para nos salvar. “Ei, garoto, vamos andando. Trate de sair, ou chamo o segurança do shopping.”

A velha sorri. Suspira. Solta a bolsa a seu lado, e volta a cortar sua salada. Já eu perco completamente a fome. Como pode acontecer o que aconteceu e eu continuar normalmente minha vida medíocre? Exista ou não, o menino instalou a verdade onde só havia a mentira. Simplesmente por existir, ele nos desmascarou. Desmanchou nosso mundo de perucas e de poses. Até a velha, agora, parece prestes a se erguer e dançar.

Acontece que o menino, que agora eu sei que existe, mesmo depois das palavras do rapaz de terno, não se move. Seus olhos estão cansados. A postura é de quem escapa de um grande risco. Um casal, em uma mesa defronte à minha, enfim comenta: “De onde surgiu esse garoto?”.

Tudo prova que, embora esteja onde supostamente não deveria estar, o menino está vivo e respira. Ele existe. Por que o apagam? A velha só não o anulou por medo —e eu bem que torci para que o medo levasse sua peruca a despencar sobre a salada. Eu só o vi porque sofro do mal de ver. Tenho uma sobrinha que sempre me diz: “Tio, você parece um detetive”. Talvez seja medo também, talvez seja um vício. Mas acho que as coisas não podem me escapar, ou não existirão.

Comentei isso com uma amiga, que me disse: “Você é um homem onipotente. Para existir, o mundo depende de seu olhar”. Ri de vergonha, mas seu comentário me desnudou. “É só uma mania de repórter”, justifiquei, sem nenhuma convicção. Minha amiga não me perdoou: “Vai nessa”.

É insuportável ver o menino naquele estado e continuar a mastigar um contrafilé. Talvez eu devesse convidá-lo para almoçar a meu lado, mas é bem provável que a velha de peruca chamasse a polícia. Aceno para o garçom e peço que embrulhe meu prato para viagem. “Algum problema com a comida?”, ele pergunta. “Não, amigo, o problema é comigo.”

Enquanto digo isso, um segurança arrasta o garoto para fora do restaurante. A velha de peruca, em seu camarote de madame, aplaude. Tenho vontade de degolá-la. Não faço isso porque, apesar da vontade de fazer isso, tenho plena consciência de que não devo fazer isso. A velha que se dane. Seu ódio ao menino equivale ao ódio que sinto por ela. Acho que eles se anulam, porque a calma volta ao salão e sua peruca, apesar de instável, não se desmancha.

Carregando o embrulho com a quentinha, saio ao encalço do garoto. Um pouco à frente, eu o alcanço. Seguro-o pelo ombro e lhe digo: “Olha, menino, é para você”. O segurança ainda o puxa pelo pescoço. Ele não me responde, tampouco pega o embrulho. Encara-me. Limita-se a cuspir na minha cara. Foi uma das mais fortes afirmações da existência que já presenciei.

José Castello

É escritor e jornalista. Autor do romance Ribamar, entre outros livros.

Rascunho