Luta contra o obscuro

Osman Lins, autor do desafiador “Avalovara”, foi um mago que, em vez de feitiços, usava a lógica e a matemática
Ilustração: Taise Dourado
02/09/2020

Em fevereiro de 1973, depois de colocar o ponto final em Avalovara, seu livro mais audacioso, Osman Lins (1924-1978) passou a acreditar que não conseguiria publicá-lo no Brasil. Desanimado, enfiou os originais em uma mala e viajou para a França, à procura de um editor estrangeiro. Ainda assim, o romance foi publicado mais cedo do que Osman poderia imaginar, pela Melhoramentos, de São Paulo, em novembro daquele mesmo ano.

Nem isso serviu para tornar menos espessa a malha de incompreensões que, desde então, envolve Avalovara. Osman Lins foi um mago que, em vez de feitiços, usava a lógica e a matemática. Ele cultivou, desde cedo, o espírito de inventor. “Jamais desejei ser um escritor de vanguarda”, apressou-se a distinguir, porém. Seu interesse pelo jogo, pela habilidade e pelo cálculo, em vez de exprimir indiferença diante da realidade, representavam, ao contrário, a busca de novas, e mais ricas, maneiras de observá-la. “Todo romance elaborado devidamente é claro, desde que lido devidamente”, dizia, transferindo o problema para os leitores preguiçosos.

Para Osman Lins, a experimentação não era um exercício pedante, ou um esporte de desocupados. Foi, ao contrário, uma arma potente contra o obscuro. “O homem vai perdendo não apenas a sensibilidade, mas o entendimento”, ele escreveu. “Não importa se conseguiu desintegrar o átomo: conhece menos a realidade e avalia mal o que o cerca.” O espírito de inventor, portanto, não era um artifício para escapar da realidade, mas, em vez disso, um exercício de aproximação mais profunda. Era, como Osman o entendia, uma forma de exaltar os espíritos, agitar as inteligências, realçar as perplexidades. Ele jamais viu a literatura como uma simples questão de estilo, ou uma afirmação social. Julgava-a, antes, uma aventura e de alto risco.

O interesse pela forma e pela pesquisa estética, que Osman exercitou em Avalovara e que foi levado ao extremo em outro fabuloso romance, hoje quase esquecido, como é A rainha dos cárceres da Grécia, de 1976, jamais excluiu, para ele, o engajamento no real. O laço que, a seu ver, liga inventividade e vida concreta está registrado, em particular, no ensaio Guerra sem testemunhas, de 1969. Osman Lins escreveu a parte mais importante de sua obra entre os anos 60 e 70, quer dizer, em plena era negra do regime militar. Apesar de não praticar uma literatura social, ou engajada, ele jamais se esquivou de alinhar-se ao lado dos defensores da liberdade de expressão. “Nossa liberdade é desgastada e anulada pelo silêncio”, escreveu em Guerra sem testemunhas. Mas, para Osman, pior que a censura política era, ainda, a indiferença. A censura, com coragem, pode ser derrubada; mas a indiferença rói a coragem e, logo, danifica tudo a sua volta.

Nascido em 1924, em Vitória de Santo Antão (PE), cidade que lhe serve de cenário para o romance O fiel e a pedra, de 1968, Osman Lins perdeu a mãe quinze dias depois. Dela não restaram, sequer, fotografias, vazio que se tornou uma primeira metáfora da grande pergunta em torno da qual sua literatura se ergue. Já que a origem está perdida, que o mundo perdeu o rumo e que tudo se despedaça, existiriam, ainda, outras maneiras de olhar o real? Com a literatura, ele nos deu uma resposta contundente, de que sim.

Se vivemos imersos em uma obscuridade cada vez mais densa, como fugir do obscuro?

Mudou-se para o Recife aos 17 anos e lá se formou contabilista. O interesse pelos números pode ser visto como um primeiro rasto de seu amor pelas estruturas narrativas firmes, lógicas e bem calculadas. Não foi por acaso que a leitura de um ensaio de Matyla Ghyka, uma especialista na mística dos números, se tornaria, depois, uma peça fundamental na criação de Avalovara. Para Osman, a literatura não é o resultado de impulsos, ou de inspiração, mas de operações intelectuais refinadas.

Só uma consciência aguda das zonas sombrias que cercam um escritor, entretanto, poderia levar a um interesse tão radical pela precisão. Se vivemos imersos em uma obscuridade cada vez mais densa, como fugir do obscuro? “O amadurecimento de um escritor processa-se justamente na sombra”, Osman Lins respondia. Ainda assim, com uma insistência que se avizinha da cegueira, paira sobre sua literatura, quase sempre, a pecha de “hermética”. Quando, com ela, Osman se aproxima muito mais da “estética de engenheiro” que, na poesia, se consolidou nas mãos de outro pernambucano célebre, o poeta João Cabral de Melo Neto.

Uma narrativa não pode ser julgada a partir de seu grau de facilidade, ou de dificuldade, acreditava. Em Carta a um escritor desconhecido, Osman comparou a obra literária a um edifício. Alguns são mais habitáveis do que outros, dizia. “Isso não significa que os mais habitados são os que ofereçam mais para os que neles se hospedam.” De seu interesse pela experimentação não se deve deduzir que Osman Lins tenha sido um escritor que evitou a vida. Ao contrário, de sua obra ele poderia dizer o que Cortázar disse a respeito de O jogo da amarelinha: “É uma espécie de petição de autenticidade total do homem”. Para Osman, cada um de seus livros representava uma súmula existencial. “Nossa existência inteira converge para cada novo livro”, dizia.

O primeiro fruto dessa guinada é o livro Nove, novena, conjunto de narrativas que publicou, já em São Paulo, em 1966. Dois anos depois, veio o romance O fiel e a pedra, livro que ele mesmo explicou ter sido inspirado na Eneida, de Virgilio. É um livro “que se lê com a impressão de estar diante de um texto clássico, mitológico”, considerou, com razão, o crítico Hélio Pólvora. De fato, o interesse pela mitologia percorre toda a literatura de Osman.

Avalovara consolidou a imagem de Osman Lins não só como grande escritor, mas também como pensador da literatura — o que, no caso de autores como ele e Julio Cortázar, significa exatamente a mesma coisa. Ninguém pode fazer bem alguma coisa se não consegue pensar bem o que faz. Essa visão crítica do ofício literário tomou forma definitiva quando, em 1970, ele se tornou professor de literatura da Faculdade de Filosofia de Marília. Nesse mesmo ano, começou a escrever Avalovara. Um livro que, infinito como uma espiral, nunca se esgota.

José Castello

É escritor e jornalista. Autor do romance Ribamar, entre outros livros.

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