Lucinda de relance

Em vez de buscar o peso do sucesso, Lucinda Nogueira Persona escreve conectada à fugacidade do instante
Ilustração: Paula Calleja
29/10/2019

Em meio aos ídolos virtuais, às estrelas fake e ao narcisismo louco que regem nosso século, é nas sombras do sucesso e nas frestas da fama que devemos procurar os grandes artistas. Em Cuiabá, no Mato Grosso, discreta e suave, vive Lucinda Nogueira Persona, uma das melhores poetas do nosso tempo. O cotidiano de Lucinda transcorre, quase sempre, à margem da vida literária. Graduada em Biologia, e mestre em Histologia e Embriologia, a pesquisadora e professora é silenciosa, leva uma rotina caseira e não se interessa pelas luzes de ácido que, mais do que nos revelar, hoje nos queimam e deformam.

Se o leitor tem dúvidas, trate de ler seu novo livro, O passo do instante. Em vez de buscar o peso do sucesso, Lucinda escreve conectada à fugacidade do instante. Ciente de que a vida não passa de uma corrida em grande velocidade que logo chega a seu fim, ela se apoia, em um de seus poemas, nos versos de Fernando Pessoa: “O que foi era nada,/ porque a porta se fechou logo”. A poesia de Lucinda se ergue sobre uma breve sucessão de faíscas, súbitas descargas através das quais a vida se expressa, mas logo se esvanece. Escreve na esperança de capturar o instante, mesmo sabendo que ele não se deixa pegar.

A diferença entre a vida e a morte, a poeta nos mostra, é o movimento. “Quem está vivo dispara ao horizonte operário/ ao passo que o outro, o morto, não vai a parte alguma”. Viver é esse deslocamento, muito breve, levíssimo, em que do nada se vai a lugar nenhum. A poesia surge nessa breve travessia. É nela que se manifesta nosso interior. “Só quem está vivo/ vagueia pelas horas e pode atravessar/ sem dar um passo sequer/ a paisagem que vem de dentro”. É para dentro que Lucinda trama seus versos. Em vez de expressar — e brilhar —, apropria-se, de relance, da vida.

O instante é o que diferencia a vida da morte. “Com a morte/ termina o acesso aos espelhos”, lembra a poeta. Não fala dos espelhos garbosos, hoje detidos nas selfies, em que as imagens feéricas se ostentam. Refere-se, ao contrário, aos velhos espelhos que, desde Borges, atormentam nossa existência com seu poder de nos roubar o que acabaram de nos entregar. O espelho só captura o transitório — aquilo que, mal começou, já acabou. Só prende, e logo solta, o “agora já”, de que nos falava, com espanto e terror, Clarice Lispector.

A irmã é levada, às pressas, a um hospital. “Restavam-lhe apenas/ duas horas de vida — mas não sabia”. O coração e os pulmões falham, a vida lhe escapa, mas ela não percebe. Até que Lucinda — só um poeta consegue fazer isso — agarra o instante mágico: “Antes de sair de casa (contaram-me)/ ao passar pelo espelho/ de relance/ ela ajeitou os cabelos/ A aparência tratada com todo zelo”. O relance fala do improviso e do impensado, fala do que se faz espontaneamente — grita a respeito do que, mesmo sem saber, somos. O relance é o material da poesia — ao menos de poetas sábios que, como Lucinda Persona, não escrevem para subir e pontificar, mas para atravessar.

Conclui seu extraordinário poema dedicado à morte da irmã: “Depois/ cada passo arrastado/ foi um passo rumo ao outro lado/ aquele que sempre dependeu/ de nossas meras suposições”. É sempre assim: vivemos entre dois blocos maciços de suposições, conjeturas, devaneios, longas meditações que apenas roçam a vida. Espremida entre estes dois blocos, está a verdade, ou o que ousamos chamar de verdade. Esta faísca, que Lucinda se atreve a transformar em versos.

Agora a poeta tenta seguir as lições de Clarice — mas a seu modo, com sua voz, sem macaqueio ou imitação. Clarice e seu desejo de escrever “com palavras/ tão agarradas entre si/ de modo que não existissem/ intervalos entre elas”. Um sonho, talvez, de retroceder a um terreno anterior à lógica — esta governanta engomada, que vive para espanar a língua e arrumar as palavras nas prateleiras. Só com esse passo para trás — esse lançar-se ao abismo anterior, ao breve instante desconhecido que antecede o instante — é possível, talvez, escrever uma poesia que não se desloque do presente e que se aferre àquilo que a vida tem de mais vivo.

O instante que Lucinda persegue não é apenas anterior, mas interior. “Com os olhos/ comunico paisagens/ acesas por dentro”, ela escreve. “Nada se passa/ que eu não ame em palavras/ sílaba por sílaba”. A cada sílaba, corresponde o espocar de um momento. E é assim, de explosão em explosão, sempre correndo atrás do que já passou, que o poeta costura seus versos. Vendo as coisas desse modo, constatamos que a poesia — ao contrário do que pensam vanguardistas e futuristas — é só um passo para trás. Sugere Lucinda: “mergulho no escuro — até o nascedouro/ onde regurgitam poemas/ (como num pântano regurgitam vidas)”.

Diante da inconstância da língua, o que o poeta pode fazer, na verdade, é quase nada. Talvez seja só dar um salto, ou um rápido empurrão — algo de novo tão brusco que, mal começou, já acabou. “Tenho, entretanto, uma dúvida:/ mudando-se a posição/ de um grupo de palavras/ gera-se poesia?” A dúvida está na base da escrita poética, não porque a poeta tenha escolhido isso, mas porque ela é o fundamento da palavra. Pergunta-se: “Ou tudo depende de um impulso/ deveras repentino/ de palavras que saem/ da escuridão para a luz?”. De que depende a poesia? Em que estado, em que momento, em que fresta ela se manifesta? Paciente, Lucinda espera uma resposta. “A resposta que me derem/ é também minha”.

São poucos os poetas que ousam se colocar nesse vão instável e inviolável que chamamos de instante. É uma tarefa para corajosos. Mas a bravura de Lucinda não se manifesta na força física, ou nos movimentos elásticos. É uma bravura interior, uma contorção sobre si mesma. Vivemos na esperança tola de que o instante permaneça, de que ele nos obedeça, e que depois, cheios de si, possamos dizer: “Isso sou eu”. Só as ilusões de nosso mundo fake celebram essa imagem definitiva. Nada é fixo. Tudo não passa de um rápido sopro, de uma percepção muito delicada, e ininteligível, daquilo que temos para viver. A poesia não é essa compreensão, a que nunca se chega, mas a tentativa — sempre frustrada, mas insaciável — de agarrá-la.

O passo do instante
Lucinda Nogueira Persona
Entrelinhas
100 págs.
José Castello

É escritor e jornalista. Autor do romance Ribamar, entre outros livros.

Rascunho