Literatura e tempo

No intervalo de uma oficina literária que dou na Biblioteca Pública do Paraná, caminho um pouco pelo amplo saguão para esticar as pernas
Helena Kolody, autora de “Infinita sinfonia”
01/06/2013

No intervalo de uma oficina literária que dou na Biblioteca Pública do Paraná, caminho um pouco pelo amplo saguão para esticar as pernas. Esbarro, então, com versos contundentes de Helena Kolody (1912-2004) — um dos nomes mais destacados da poesia paranaense. Em letras fortes, eles começam assim: “No movimento veloz/ de nossa viagem,/ embala-nos a ilusão/ da fuga do tempo”. Minha memória não me ajuda: puxo um bloco e anoto. Foram tirados do livro Infinito presente, que Helena publicou em 1980.

Recuo um pouco e me acomodo em uma poltrona para ler com mais calma o quarteto seguinte. Continuo a anotar: “Poeira esparsa no vento/ apenas passamos nós./ O tempo é mar que se alarga/ no infinito presente”. De imediato, numa dessas conexões bruscas que nos vêm como uma rasteira, penso no capítulo nono de Lavoura arcaica, a novela de Raduan Nassar que estou justamente a estudar com meus alunos: capítulo dedicado a um contundente discurso sobre o tempo.

Volto e recomeço por Helena. É muito boa a idéia de que não é o tempo que passa, mas somos nós, sim, que o atravessamos. Agarramo-nos à ilusão de que é o tempo que se desenrola à nossa frente, como uma longa passadeira, e que, veloz, é ele também que nos foge. Mas é o contrário. Na travessia do tempo — que se estende diante de nós como um deserto, ou um jardim —, somos nós que apressamos o passo (esterilidade) ou que o amansamos (fertilidade). Tudo, ou quase tudo, está em nossas mãos — ou a nossos pés.

Somos nós quem dominamos o tempo, e não o contrário. Idéia bastante próxima daquela apresentada no discurso do pai no capítulo nono do livro de Raduan. Está escrito: “Rico só é o homem que aprendeu, piedoso e humilde, a conviver com o tempo, aproximando-se dele com ternura, não contrariando suas disposições, não se rebelando contra seu curso, não irritando sua corrente, estando atento a seu fluxo”. Em poucas palavras: riqueza é atravessar o tempo com delicadeza.

Fecho um pouco os olhos, não para cochilar, mas para pensar um pouco em mim mesmo. Desde que fiz sessenta anos — estou com sessenta e dois —, sempre converso com meus amigos de geração sobre a pressão discreta, mas insistente, que a passagem do tempo exerce sobre nós. Muitas vezes, talvez na maioria, vivemos a reclamar do tempo, a lhe atribuir as piores maldades, a enxovalhá-lo. Tanto os versos de Helena como o capítulo nono de Raduan me levam a pensar que, antes de criticar o tempo e seu arrastar inexorável, devemos criticar a nós mesmos e a maneira como o usamos.

Há muita tristeza no tempo que escorre, mas há também muita beleza. Tudo depende do que dele conseguimos arrancar. Tudo depende do modo como nós o pisamos. Do ritmo de nossos passos. Da firmeza de nossa direção. Vejam só: uma poeta e um ficcionista, que na aparência trabalham “fora do tempo”, me fazem encará-lo. Como uma ampla paisagem que se abre em torno de mim. Como um cenário que me abriga e através do qual sou levado a caminhar. Ali sou eu quem escolhe os passos. Como uma criação minha, algo que escolho, em vez de uma condenação.

NOTA
O texto Literatura e tempo foi publicado no blog A literatura na poltrona, mantido por José Castello, colunista do caderno Prosa, no site do jornal O Globo. A republicação no Rascunho faz parte de um acordo entre os dois veículos.

José Castello

É escritor e jornalista. Autor do romance Ribamar, entre outros livros.

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