É preciso coragem para se tornar escritor? Creio que a maioria das pessoas diria que sim. A resposta, contudo, pode ser outra. Para um escritor, mais importante do que a coragem, talvez seja o medo. A leitura de Papéis inesperados, de Julio Cortázar, coletânea de dispersos recém lançada pela Civilização Brasileira, desencadeou em mim muitos pensamentos. Um deles, que se tornou quase obsessivo, diz respeito justamente à relação indestrutível entre literatura e medo.
Inspirou-me, antes de tudo, uma recordação pessoal. Já relatei a história em Inventário das sombras, livro que lancei em 1999. Se me permito a ela retornar, é só porque minha pequena experiência me ajuda pensar, desde o interior, uma das teses cruciais de Cortázar: a de que o escritor precisa partir de seus medos, precisa lhe atribuir valor, para conseguir escrever.
Em 1977, enviei os originais de um conto (sofrível e que, por isso mesmo, jamais publiquei) a Clarice Lispector. Esperava, é claro, que a voz de Clarice me autorizasse a prosseguir na via da ficção. O tempo passou, não recebi resposta alguma. Até que um dia, ela me telefonou. Foi, como sempre, lacônica, quase ríspida. “Li seu conto”, me disse — e isso, na verdade, já me bastava. Sem se importar com minhas esperanças juvenis, Clarice disse a frase que nunca mais esqueci: “Você é um homem muito medroso e com medo ninguém escreve”.
Minha pequena história me volta, com toda a força, enquanto leio Uma infância medrosa, artigo que Cortázar publicou originalmente na revista mexicana Processo, em 1983, agora incorporado à antologia de inéditos, lançada no ano passado, em Paris. Sem nos poupar das reflexões mais difíceis, e sem poupar a si mesmo, ele admite: “Indagar-me sobre o medo na minha infância é abrir um território vertiginoso e cruel que tentei inutilmente esquecer”.
Argumenta Cortázar que os adultos são hipócritas frente aos aspectos mais dolorosos da infância. Adultos costumam apagar da memória aquilo que, no passado, julgavam vergonhoso; e depois suprimem nos filhos as mesmas experiências, sob o argumento de que desejam poupá-los da vergonha. Esses momentos de insegurança e pavor, no caso de alguns escritores, se tornam, porém, o combustível da escrita. Sem medo — arrisco-me agora (com muito medo) a inverter a frase de Clarice — ninguém escreve.
Os medos da infância, Cortázar nos lembra, não voltam só na forma dos pesadelos noturnos, que nos acompanham até a velhice com o mesmo frescor; mas também em outros pesadelos — talvez ainda mais apavorantes — que tomam a forma mais sofisticada, e aparentemente benigna, da ficção. A literatura não é só filha do talento, da disciplina e da inspiração. Nasce, também, de sentimentos detestáveis que, de outra forma, talvez nos atormentassem até o fim de nossos dias. Nasce do que temos de melhor, mas também do que temos de pior, e é preciso dizer isso com todas as letras.
Mas com quem ficar? Com Clarice? Ou com Cortázar? O que um escritor deve fazer: lutar contra o medo, enfrentá-lo, ultrapassá-lo? Ou, ao contrário, a ele se apegar, incorporá-lo e dele sempre partir? A única resposta possível é complicada, pois se parece com uma fuga e não com uma solução: devemos ficar com os dois. Por quê? Ambos encaram o mesmo fantasma. Clarice chama nossa atenção para a necessidade de lutar contra ele e de vencê-lo. Cortázar, para a necessidade de encará-lo e dele se apoderar. Para os dois, o medo está na base na literatura.
Recorda Cortázar que não é preciso que uma criança tenha experiências traumáticas, ou sofra de algum tipo de violência, para que o medo nela se instale como uma doença incurável. Não se pode curar o medo, mas é possível não sucumbir a ele e até, como sugere, transformá-lo em um fator positivo. Grandes medos, ele lembra ainda, não surgem só da experiência da solidão, do desamparo, ou da escuridão — coisas que as crianças tanto abominam. Podem surgir, também, de experiências apaziguantes e luminosas. Por exemplo: da leitura precoce de grandes ficções.
Aqui a cobra devora a própria cauda: a leitura de ficções muitas vezes gera medos que só se solucionam quando escrevemos novas ficções. A isso se pode chamar, talvez, de vocação. Quem chama um escritor? Quem o convoca para a escrita? De onde vem esse chamamento irresistível? A resposta é uma só: dele mesmo. Dizendo melhor: dos subterrâneos em que sua alma se afunda.
Mas de onde vêm os medos? Cortázar chega, então, ao centro de tudo: “O vórtice do pavor sempre foi a manifestação do sobrenatural, daquilo que não se pode tocar nem ouvir nem ver com os sentidos habituais”. Em outras palavras: a literatura precisa do medo porque atua como um substituto do tato, da audição e da visão. O que não se pode nem tocar, nem ouvir, nem ver, ainda assim, se pode ler. Mais que isso (e aqui a literatura se afirma como uma máquina de imaginar): só com esse substituto é possível inventar, sonhar, imaginar.
Para escrever (estranho destino!), o escritor precisa de um mal que o sustente. No caso de Cortázar — de novo o retorno às palavras, que nunca se esgotam — a origem deste mal estava na própria ficção. Aos oito ou nove anos de idade, ele fez a leitura clandestina (porque proibida pelos pais) dos contos de terror de Edgar Alan Poe. Os relatos de Poe lhe provocaram “um horror unívoco que literalmente me fez adoecer durante meses e do qual nunca me curei totalmente”.
Lendo Poe, Cortázar — o eterno doente — aprendeu que o pior medo estava dentro dele. Na escola, seus colegas tinham medo de fantasmas e de outras ameaças externas. Mas para ele, não era assim. “A idéia do fantasma típico, com lençol branco e barulho de correntes, nunca me preocupou.” Os fantasmas que o atormentavam eram de outra espécie — aqueles que se escondiam em seu interior. Sonambulismo, catalepsia, impulsos homicidas, e também o sentimento da duplicação (o duplo é o outro escondido dentro do mesmo). Todos lhe pareciam mais tenebrosos do que mortos que deixam suas tumbas, ou espectros que sobrevoam a noite.
Os piores medos, nos diz ainda Cortázar, não têm um objeto preciso e não correspondem a uma ameaça objetiva. Surgem daquilo que a literatura inglesa chama de “the think” — isto é, “a coisa”, que ele prefere definir como “o que não tem imagem, nem definição precisa”. Voltando a Clarice: também ela falava da “coisa” ou, algumas vezes, do “isso”, e ainda do “it” Tentativas sempre insuficientes de nomear a origem do que não tem um nome. Esforços — e o que é a literatura, senão um esforço para ser?
Para Cortázar, a literatura se dirige justamente ao indefinido, ao inominável, ao absurdo; ela existe para expressar, ou tentar expressar, o que está, como ele dizia, “além das palavras”. Também Clarice acreditava que escrevia para chegar “atrás de detrás do pensamento”. É sempre nesse grande vão, onde a língua fracassa e se torna só um balbuciar, que a literatura se escreve.
Não importa saber, então, se para escrever devemos abandonar o medo (Clarice), ou tomar posse dele (Cortázar). Os dois estão falando do mesmo rombo, se referem à mesma ausência e se perfilam sobre o mesmo abismo. Não importa se você encara um abismo, ou se lhe dá as costas: o risco de cair é o mesmo. Nem olhar, nem fechar os olhos destroem o abismo.
Lembra Cortázar que “um mundo sem medo seria um mundo seguro demais de si mesmo, mecânico demais”. Em um mundo luminoso e esclarecido, de fato, a imaginação não faria sentido. Felizmente somos humanos, felizmente falhamos. E, por isso, o medo nunca nos abandona. Só enfrentando o medo, como propõe Clarice, ou dele fazendo nosso parceiro, como Julio Cortázar nos sugere, só assim conseguimos escrever. As histórias pessoais de Cortázar e de Clarice nos dizem ainda mais: só assim conseguimos ser.
NOTA
O texto Literatura e medo foi publicado em 1º de julho no blog A literatura na poltrona, mantido por José Castello, colunista do caderno Prosa & Verso, no site do jornal O Globo. A republicação no Rascunho faz parte de um acordo entre os dois veículos.