Sinto-me inquieto com certa tendência burocrática — a escrita como um “dever a cumprir”, um “trabalho de casa” — que percebo na literatura brasileira contemporânea. Ficções bem feitas, arrematadas com competência, revisadas com afinco — mas vazias. Isso, de fato, me aborrece. Creio que é, antes de tudo, uma deformação de mercado. Autores escrevendo para agradar editores. Para chegar às listas de mais vendidos. Para praticar o tal “estilo internacional”. Na esperança tola de conseguir traduções e adaptações rápidas. Em resumo: para “cumprir tarefa” e exibir depois o título de “competentes”.
Sempre achei que literatura e competência se excluem. Não é pelo “bem feito” que uma ficção arrebata o leitor. Não se trata de determinação, ou de aplicação. A literatura não tem relação alguma com o bom comportamento. Em contato diário com a produção de hoje, e enquanto fuço minha biblioteca, o azar (a sorte) me leva a Os últimos dias, reunião de textos de Liev Tolstói publicada pela Penguin/Companhia das Letras em 2009. Ainda guiado pelo acaso, abro o livro justamente na página 95, onde está um breve trecho de O que é a arte?, livro que Tolstói publicou em 1896. A tradução é de Anastassia Bytsenko.
Uma ideia, de imediato, se destaca: a do “contágio”. Sim, não nos aproximamos verdadeiramente de um livro por “aplicação”, mas por “contágio”, defende Tolstói. “Nessa capacidade das pessoas de se contagiar com sentimentos de outras pessoas se fundamenta a ação da arte.” A literatura “bem feita” — como um terno bem cortado — pode preencher nossas expectativas de correção, de elegância e até de vida impecável. Mas simplesmente não arrebata — isto é, não nos arrasta. Arrebatar é nos arrancar com violência de uma certa estagnação. O mundo contemporâneo — veloz, agitado, hiper ativo — tende, porém, à estagnação e ao marasmo. Precisamos da arte (da literatura) para acordar.
Insiste Tolstói, falando da arte em geral: “No momento em que os espectadores e os ouvintes se contagiam pela mesma sensação que experimentou seu autor — isso é a arte”. Há na arte (na literatura), sim, um movimento de comunicação. Não a troca aplicada, formal e coerente de mensagens objetivas, mas uma troca desregrada de impulsos e de sustos. Novamente: o contágio. Escreve Tolstói: “O principal é que a arte não é o prazer, mas um meio de comunicação que, unindo pessoas pelos mesmos sentimentos, é indispensável para a vida e o progresso de cada indivíduo e de toda a humanidade”. Vejo a literatura como uma espécie de empurrão. Algo nos tira do lugar — eis um livro. Algo nos agita e desassossega. Contudo, a literatura “bem feita” de hoje despreza esses sentimentos radicais. Busca, ao contrário, a competência e o equilíbrio. Quer acertar — ou, pelo menos, não errar. Por isso se torna, tantas vezes, uma literatura escolar. “Para professores” — no sentido em que é escrita para agradar os mestres (editores, críticos, jurados de prêmios literários, etc.).
Insiste, ainda, Tolstói: “Existe um indício incontestável que distingue a arte verdadeira da falsa — o contágio”. Ou o leitor é contaminado e abalado pelo que lê, ou não lê. A literatura se parece, assim, com uma doença. Que provoca dor, inevitável, desgaste, mas que também nos empurra para a frente. Daí, alerta Tolstói, a necessidade de separar a arte de sua adulteração: “Por mais que esse objeto seja poético, pareça autêntico, impressionante ou interessante, não será uma obra de arte se não despertar no homem aquela sensação muito peculiar de felicidade, de comunhão espiritual com o outro (autor) (…) que contemplam a mesma obra de arte”.
O contágio não se dá gratuitamente. Sua primeira condição, ele nos diz, é a “necessidade interior”. A sinceridade exigida do escritor é simples: que escreva para si mesmo — e não para as gôndolas das livrarias, ou para as páginas do sucesso. Singularidade, clareza e sinceridade seriam, para Tolstói, princípios essenciais da arte. “Trata-se de três condições cuja presença separa a arte de suas falsificações e, ao mesmo tempo, determina o valor de qualquer obra de arte, a despeito de seu conteúdo.” Pergunto-me, um tanto perplexo, se os autores contemporâneos atribuem algum valor às indicações de Tolstói. Parece que não. Serão, provavelmente, consideradas antigas e sem propósito. Inúteis. Pois eu as releio com entusiasmo e fervor. Continuo a buscar caminhos para me libertar do “congelamento” que define nosso tempo. Muita agitação — para nada. Muitos avanços — para o retrocesso? Muitas novidades — para continuar no mesmo lugar.
Talvez eu esteja muito pessimista. Ainda assim, a ideia do contágio pode ser muito útil para os escritores contemporâneos. Que deixem de lado seus projetos de sucesso e de aceitação. Que se esqueçam, um pouco, da opinião alheia para pensar em si mesmos. Aprecio os escritores silenciosos, que trabalham serenamente em seus escritos, quietos em seu canto, sem pirotecnias ou estardalhaços. Recentemente, perdemos um escritor — grande poeta — que agia exatamente assim: Manoel de Barros. Por isso talvez, infelizmente, e apesar de sua inegável grandeza, ele tenha sido tão desprezado.
NOTA
O texto Literatura e contágio foi publicado originalmente no blog A literatura na poltrona, do caderno Prosa, do jornal O Globo.