Literatura e acaso

Em entrevista ao Rascunho, edição de novembro último, o escritor Carlos de Brito e Mello — um dos mais brilhantes talentos da nova geração de prosadores brasileiros — me dá uma rasteira
Carlos de Brito e Mello, autor de “A passagem tensa dos corpos”
01/03/2015

Em entrevista ao Rascunho, edição de novembro último, o escritor Carlos de Brito e Mello — um dos mais brilhantes talentos da nova geração de prosadores brasileiros — me dá uma rasteira. Tento explicar. Muitas vezes, mas muitas mesmo, quando não consigo começar a escrever um texto, abro um livro qualquer ao acaso, escolho ao acaso também uma palavra, e a transporto para a minha linha.

Essa palavra se torna, então, o trampolim a partir do qual salto para a escrita. Nessas ocasiões, repetindo o que acontece com os praticantes do salto ornamental, ela se torna essencial. Depois que um nadador se lança no espaço, tudo o que interessa é seu salto, ninguém pensa mais no trampolim. Também essa primeira palavra, muitas vezes, é depois simplesmente arrancada, eliminada. Ou permanece ali, na abertura, sem nenhum vestígio, porém, de sua origem.

Pois lendo a entrevista de Carlos ao Rascunho, na seção Inquérito, chegando ao momento em que a pergunta é a respeito de suas obsessões literárias, encontro a seguinte resposta: “Em momentos de impasse, tomar uma palavra qualquer, de um texto qualquer, literário ou não, e começar a escrever a partir daquela palavra”. A sorte — ou o azar — se transformam, assim, em parte crucial da literatura. A palavra é aquele trampolim que depois fica esquecido, ou perdido no emaranhado das letras. Contudo, sem ela, o texto não existiria. Na verdade, o acaso não participa apenas nesse momento, mas está presente em cada escolha de caminho. Ao escrever, um escritor atravessa um emaranhado de encruzilhadas. Nessa rota intrincada, ele deve, a cada momento, fazer escolhas. E, a cada escolha, a sorte (o acaso) entra em jogo. Por mais racional que um autor se julgue, este é um elemento do qual não consegue escapar. O acaso “escreve” um pouco também. Ele é a terceira mão de um escritor.

Na semana retrasada (acaso de novo), escrevi sobre o livro de aforismos de Rafael Argullol [Breviário de la aurora]. Volto a ele em busca da palavra Acaso, mas não a encontro. Contudo, ainda nos verbetes da letra A, chego a outra palavra, Azar, que a substitui. Os dicionários de língua portuguesa a registram como um sinônimo de Acaso — então não estou forçando as coisas. Sobre o Azar, Argullol nos diz: “O que está escrito no livro que nunca leremos”. De fato, não podemos conhecer a sorte do azar (do acaso). Ele procede de regiões inacessíveis à razão, e daí talvez proceda a sua força. Por que está ali? Ninguém sabe. Mas talvez por isso nos sentimos obrigados a fazer alguma coisa com ele.

Avançando um pouco mais na leitura do livro de Argullol, porém, chego a um desmentido. Estou nos verbetes da letra D. Alcanço a palavra Destino — que o dicionário registra como sinônimo de Sorte. Acaso de novo. Sobre o Destino, Argullol escreve: “A escolha que fingimos ser azar”. Claro: nessa escolha fortuita, há ainda assim algo de deliberado. Diante das letras misteriosas que lhe caem nas mãos, o escritor faz suas escolhas. É alguém que escolhe às cegas. Alguém que, ao fazer suas escolhas, conta com a sorte, ou dela se afasta. Sim, o escritor não deixa de eleger caminhos, mas é sobre o acaso, mesmo assim, que continua a caminhar.

Literatura e vida
Na declaração coletiva que emitiram em 27 de janeiro de 1925 — lá se vão noventa anos! —, os surrealistas franceses de Breton, Artaud, Aragon e tantos outros afirmam dois princípios cruciais. Primeiro: “Não temos nada a ver com a literatura”. Segundo: “O surrealismo é o meio de libertação total do espírito”. Reencontro as duas ousadas propostas durante a leitura de Sobre o surrealismo, ensaio de Aldo Pellegrini (Sol Negro Edições). A declaração dos escritores surrealistas franceses (copio Pellegrini) termina assim: “O surrealismo não é uma forma poética. É um grito do espírito que se volta para si mesmo decidido a pulverizar desesperadamente suas travas”. Tem a aparência de uma luta contra os escritores e sua escrita. Neles aplica, na verdade, uma injeção de vigor.

Ainda hoje muitos acreditam na “literatura pela literatura”, crença que a afasta do mundo e que nos rouba um potente instrumento de interpretação e convívio com o real. Mas, lembram os surrealistas franceses, “o canto pelo canto em si não existe (nem mesmo nos pássaros)”. Todo canto — poesia, mas também ficção — carrega sentimentos de amor, de ódio, de cólera, de desejo de viver, de desespero, de angústia de morte. Esse canto não se limita a “explicar” as coisas mas, ressaltam ainda os surrealistas, “é parte vivente do homem”. É a vida que se entrega como poesia — e, portanto, quando falamos de literatura, é da vida que, mesmo sem perceber, continuamos a falar.

Ainda hoje não é fácil defender essa ideia porque os “práticos” e apressados logo pensam na literatura panfletária, ou engajada, e a excluem. Logo reduzem a afirmação a uma palavra de ordem. Não suportam, assim, a notícia espantosa que ela carrega. Lembra Pellegrini que a obsessão pelo vital não é exclusiva do surrealismo. Na verdade, ela se espalha por toda a literatura: ela é parte essencial da literatura. Isso se excluímos a literatura escrita burocraticamente, ou que se ampara na busca dos efeitos pragmáticos. Talvez hoje as obras dos surrealistas pareçam um tanto ultrapassadas ou, pelo menos, datadas. Mas suas ideias, mostra Aldo Pellegrini, guardam o mesmo vigor. Elas não envelheceram. Estão, talvez, reprimidas pelas obsessões “objetivas”, isto é, aquelas que só consideram os resultados imediatos. Mas continuam aí.

Em um mundo que se torna cada vez mais incompreensível, a literatura, com seu olhar expandido e sua vivacidade, está aí para nos ajudar a viver. Ela afirma a importância da imaginação que, em vez de ser disfarce e cegueira, como muitos ainda pensam, é um instrumento de ampliação do real. Admite Pellegrini: “A importância dada à imaginação, ao mundo fantástico e ao dos sonhos, pode levar a crer que o surrealismo significava um mundo de evadir-se da vida”. Ao contrário, ele diz, o surrealismo enfatizava a necessidade de penetrar na vida para “explorar todas as suas possibilidades”. Necessidade que, muito além das escolas e dos grupos literários, é cada vez mais forte.

NOTA
Os textos Literatura e acaso e Literatura e vida foram publicados originalmente no blog A literatura na poltrona, do caderno Prosa, do jornal O Globo.

José Castello

É escritor e jornalista. Autor do romance Ribamar, entre outros livros.

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