Estou sempre a reler, com o mesmo espanto, os sonhos de Franz Kafka — na edição lançada pela Iluminuras, em tradução de Ricardo F. Henrique, em 2003. Eles reforçam a tese de que a literatura começa muito antes da escrita, e mesmo antes de qualquer processo intelectual anterior (a leitura, os esboços, etc). A literatura — mostram — começa antes ainda de estarmos acordados. Apesar da estrutura desordenada e do estilo apressado, os sonhos de Kafka antecipam seus relatos. Lá estão os mesmos monstros, a mesma arquitetura escabrosa, os mesmos vícios, a mesma insanidade. Tudo — ou quase tudo — vem dali. Por isso se torna tão estimulante lê-los.
Entre tantos sonhos, um dos que mais me impressionam é o que Kafka teve com seu pai em 6 de maio de 1912. Passeando por Berlim, e depois de saltar de um bonde, Kafka e seu pai esbarram com uma parede muito íngreme. Um obstáculo, como as folhas em branco. Os dois começam a escalá-la. “Meu pai foi escalando quase dançando”, descreve Kafka. Ele, ao contrário, logo fica para trás. Escorrega várias vezes seguidas. Tem a sensação de que, quanto mais avança, mais íngreme a parede se torna. Cabe perguntar se essa não é a mesma sensação que Kafka tem ao escrever. Quanto mais escreve, mais difícil se torna escrever.
“Também era muito desagradável o fato de a parede estar coberta de excremento humano que ia grudando em mim, aos flocos, sobretudo no peiro”, prossegue Kafka. Escritores também lidam com restos. Com dejetos. Quanto mais escrevem, menos satisfeitos estão e mais necessidade têm de alterar ou de cortar. Escrever é mexer em coisas desagradáveis que, “como flocos”, vão grudando na gente. Falava o próprio Kafka do “limite tênue” que separa a vida cotidiana e a vida onírica. Muitas vezes as experiências dos sonhos, de tão fortes, parecem mais reais do que as experiências vividas. Dessa contaminação Kafka tirava suas histórias.
Quanto mais se suja de excrementos, mais Kafka tenta se limpar. Mais ele limpa seu texto. Mas quanto mais se limpa, mais sujo se sente. Quanto mais corta suas palavras, quanto mais as remenda, quanto mais conserta, mais infeliz está. No alto da parede há um edifício. Quando Kafka consegue chegar, seu pai já está saindo do edifício, onde teve um encontro. “Esse Dr. von Leyden! É um homem extraordinário!”, Hermann Kafka diz cheio de entusiasmo. O doutor é médico. Acontece que Hermann não o visitou como um paciente, mas como um admirador. Chegando atrasado ao topo, Kafka, o filho, pega a cena pelo meio. Exatamente como as cenas “surgem” na cabeça de um escritor: soltas, arbitrárias, incoerentes, e só depois são costuradas.
“À esquerda atrás de mim vi um homem sentado de costas num aposento que era todo de vidro.” Kafka entendeu logo — por razões que permanecem obscuras — que se tratava não do Dr. von Leyden, mas de seu secretário. Seu pai, Hermann, falara com o secretário, e não com o próprio médico. Logo, entusiasmara-se pelo homem errado. O malentendido — ou talvez o incompreendido — também está na base da literatura de Kafka. O mundo é incoerente, as várias peças não se encaixam. E por isso parece absurdo, e por isso também parece imóvel. Kafka “julga” o erro do pai, mas não considera a hipótese de ele mesmo estar enganado. Também um escritor pode julgar criticamente um texto (um ato) alheio. Mas como muito mais dificuldades conseguirá julgar seus próprios atos (escritos).
O sonho do pai (eu o chamarei assim) reúne vários dos impasses, malentendidos, e também sentimentos insuportáveis que configuram a atividade do escritor. O sonho é quase um resumo das adversidades que o próprio Kafka teria (ou teve) que enfrentar para escrever seus relatos. Onde o pai aparece como o enganado, ou até como falsificador, é na verdade o filho que derrapa e treme. É ali que o filho, ao se expor à grande “sujeira” da escrita, consegue afinal se tornar quem ele é.