José fechadura

Assim é a literatura: uma chave que destrava em nós o que desconhecemos e que, mesmo depois, continuamos a desconhecer
Ilustração: Juliana Montenegro
01/05/2025

Assisto a uma adaptação alemã para o cinema de O castelo, de Franz Kafka. Já no título, esbarro com a palavra Schloss que, em alemão, significa “castelo”. Logo penso na existência hipotética, ou terrivelmente real, de um Joseph Schloss, que seria eu mesmo. Dias depois, comento com um amigo, que é fluente no alemão, o peso que esse nome, Schloss, provocava em mim. Em vez de abrandar meu horror, ele me traz mais um significado tenebroso para a palavra: Schloss quer dizer, também, “fechadura”, ele me avisa. Avisa e se cala.

Agora sim estou preso no alçapão das palavras. Não só preso, mas trancafiado. A fechadura me bloqueia a imaginação. Preciso destravá-la, abrir esse fecho que me sufoca e, quanto a isso, mais uma vez, só o passado pode me trazer alívio. O problema é que, na infância, minha mãe reclamava que eu tinha um ferrolho na boca. Não respondia às perguntas que ela me fazia. Não abria a boca para conversar com ela. Era o tal “escudo de prata” de que Kafka fala em seu conto perdido O cavaleiro do balde. Sim, o conto que ele excluiu de seu único livro publicado em vida, Um médico rural, de 1920. O conto que Kafka calou.

Quando ele entregou o primeiro exemplar de Um médico rural a seu pai, Hermann Kafka, o livro já carregava essa ferida de origem: a cárie do conto excluído. Foi diante desse primeiro livro fraturado que seu pai pronunciou a célebre sentença assassina: “Coloque-o sobre o criado mudo”. Na verdade, o conto não está perdido: agora mesmo eu tenho bem aqui a meu lado em uma tradução para o português que o genial Modesto Carone, o grande especialista brasileiro em Kafka, publicou em um jornal paulista, no ano de 1995. Mas vejam como estou! Começo com uma fechadura e já estou com um balde.

Esse conto, O homem do balde, porta algum segredo que Kafka calou no momento em que o excluiu. Qual segredo? Para chegar a ele, temos que analisar minuciosamente o conto, temos que procurar o segredo dentro dele. Mas não estou com paciência para isso agora, meus calos doem e não achei nenhum balde em casa para mergulhá-los em água quente, então fica para depois, os leitores me perdoem. Também não tenho muita paciência para análises literárias, os leitores já perceberam isso. Começo a falar de um conto, ou de um romance, ou de um poema, e termino sempre falando de mim mesmo. E aqui mais uma vez faço isso, incluindo meus calos na história como meus representantes. De modo que não vou resumir o conto, ou nada disso, os que têm alguma esperança, por favor, desistam. Minha fechadura não deixa, não permite isso.

Do que vou falar então? Minha pobre mãe gritava: “Onde está a chave que esse menino engoliu?”. Meu tio Mário, seu irmão mais velho, que era jornaleiro e mágico, debochava: “Vá procurar no vaso sanitário”. Foi assim que, anos antes, encontraram um anel de formatura de minha irmã mais velha, Leyla, que eu engolira por causa da semelhança entre o rubi e o morango, minha fruta favorita. Hoje odeio morangos, mas isso também é outra história, que não contarei aqui. Na primeira infância, cheguei a beber um vidro inteiro de colônia floral de minha irmã, achando que era guaraná. Seu quarto, ao contrário dos outros, sempre trancados à fechadura, vivia aberto. Era um paraíso mágico para minhas descobertas de menino. Para me livrar da colônia que me pareceu ser guaraná, tiveram que me submeter a uma lavagem. Desde cedo, comigo, tudo foi complicado, eu e meu corpo estivemos sempre em luta. Mas não se apressem, nunca desejei mudar de corpo. Eu sim aceitava meu corpo, exatamente como era e é, mas achava que mais ninguém o aceitava. Tudo o que eu queria, portanto, era ser aceito.

Mas onde estou? Ah, sim, falava da palavra Schloss, que significa “castelo”, mas também pode ser traduzida por “fechadura”, a mesma que até hoje me incomoda e pesa. Não devia incomodar e pesar, mas isso continua a acontecer. Por quê? Recordo que meu tio Mário, que surgiu em cena no parágrafo anterior, ciente de meu fechamento e de minha timidez exagerada, gostava de me pegar, aos sábados, para um passeio. “Vamos ter uma manhã entre homens”, ele costumava dizer a minha mãe quando chegava em nossa casa. Dizia isso para me fortalecer, para me libertar, mas eu, é claro, sentia como mais uma prisão. Entre homens significa o quê? Até hoje homens usam essa expressão para definir certas conversas secretas, mas eu não sei o que isso significa e onde eles pretendem chegar com isso. Sim, entre homens pensam que podem se desnudar, mas não pode uma conversar entre um homem e uma mulher ser também “entre homens”? Quer dizer, não pode ser “séria”, ou “franca”, ou “direta”, ou algumas dessas qualidades que homens acham que só surgem quando conversamos entre nós mesmos?

Meu tio não falava de nada especial. Não falava de segredos, muito menos de segredos masculinos, falava de carros, ou de futebol, ou me contava piadas sem graça, mas que o faziam rir muito. Eu não chegava a entender muitas delas, elas sim tinham uma tranca, uma fechadura que bloqueava meu acesso. Talvez fossem sensuais, ou eróticas, ou obscenas, mas eu não conseguia perceber isso. Era tudo muito chato, eu só gostava quando parávamos para comer hambúrgueres na lanchonete Dantas, e meu tio tomava uma cerveja preta, e eu pedia um guaraná que, esse sim, não era uma colônia Alfazema. Ou seja: nossos encontros não serviam de nada, só para passar o tempo. Quando me entregava de volta em casa, meu tio dizia a minha mãe: “Esse menino é difícil mesmo”. Ou então, simplesmente e ferozmente: “Vim devolver o José Fechadura”.

Ali, sem saber, ele antecipava o castelo de Kafka e a bela tradução feita por Moderno Carone. Ali ele diagnosticava meus silêncios, que eram feitos de segredos. Um dia, desanimado, meu tio sintetizou assim: “Esse menino engoliu um pastor alemão”. Vejam como são as coisas: ao começar essa crônica não sabia sobre o que escreveria, e mesmo agora, que a termino, não sei sobre o que escrevi. Só sei que escrevi. Assim é a literatura: uma chave que destrava em nós o que desconhecemos. E que, mesmo depois, continuamos a desconhecer.

José Castello

É escritor e jornalista. Autor do romance Ribamar, entre outros livros.

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