Jornalismo: objetividade, fatos, realidade. Literatura: subjetividade, sonhos, imaginação. Este é o esquema que se costuma usar para distinguir e separar o jornalismo da literatura. Tratei deles em uma oficina que dei, em Fortaleza, no ano de 2012. Agora reencontro minhas anotações pessoais. A elas retorno. Em resumo: de um lado estaria a realidade (jornalismo), de outro a fantasia (literatura). Nem jornalismo, nem literatura cabem, porém, nessa camisa de força. O mundo não é tão esquemático. Classificações rígidas, em vez de darem conta da existência, a anulam e matam.
Reino da objetividade, o jornalismo está, contudo, infiltrado e contaminado pela subjetividade. Mesmo o repórter mais ortodoxo, que só se interessa pelos fatos e nada além deles, está, todo o tempo, submetido aos limites de sua vida subjetiva e das limitações que caracterizam o humano. A cada passo, ele faz escolhas, prefere uma coisa (um fato) a outra coisa; escolhe a perspectiva, sempre parcial, desde a qual observa seu objeto. Por mais que lute para isso, um jornalista nunca é “neutro”. Traz consigo, sempre, os limites de sua formação pessoal, de sua educação, de seu temperamento e de seu gosto. Vê algumas coisas. Outras — ainda que cheio de boas intenções — ele não consegue ver.
O jornalista, como o detetive, trabalha com o pensamento lógico, mas a imaginação está sempre a infernizá-lo. Nunca se livra de seus sonhos, de seus receios, de suas repulsas. Nunca se afasta de suas ideias, de seus costumes, de seus preconceitos e suas superstições. A ética do jornalismo o obriga a ser imparcial, mas ele tem sempre uma visão limitada (parcial) das coisas. A ética o obriga a ser objetivo, mas sua subjetividade está sempre a desviá-lo desse princípio e a interferir em seu olhar. Em um movimento contrário, o escritor, por mais que se embrenhe em seu mundo subjetivo — feito de emoções, sonhos, fantasias, impulsos — é sempre pressionado e, de certo modo sutil, moldado pela realidade. Não existe escritor “puro”: a tese da arte pela arte não passa de um devaneio. Toda subjetividade está marcada pelos limites de seu tempo. Toda subjetividade traz, em si, as marcas de uma experiência e de um destino. A fantasia mistura sonhos secretos com restos da vida diurna.
O duplo sentido da palavra “sujeito” ilustra isso muito bem. O sujeito de uma oração é aquele que “faz e acontece”, isto é, aquele que comanda a ação. Mas, ao mesmo tempo, ele está submetido (está sujeito) aos limites do mundo, está preso às pressões da realidade, está “fora do comando”. Mesmo a mais fantasiosa e imaginativa das ficções traz as marcas de um real que a pressiona e molda. No mais fantasioso dos relatos há sempre um resto decisivo de experiência e de vida. Jornalismo e literatura habitam uma região limítrofe. Estão mais próximos, são mais parecidos, do que, em geral, ousam admitir.
Essa estreita proximidade aparece, de modo muito claro, em um gênero como a crônica — à maneira clássica de Rubem Braga, Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos, Sérgio Porto. A crônica é o coração desse limite que separa, mas também une, jornalismo e literatura. Ela tem um pé na realidade, outro na ficção. Nunca sabemos ao certo se um fato narrado por um cronista é real (se ele “aconteceu mesmo”), ou se é fantasioso (se é “só uma invenção”). Na verdade, ele costuma ser uma mistura das duas coisas. Na crônica, nunca podemos dizer com segurança onde está a realidade, onde está a invenção. A crônica é jornalismo ou literatura? Nunca sabemos responder com segurança. E é dessa impossibilidade (deste “nunca”) que a crônica tira sua riqueza.
Ninguém será um bom jornalista se não souber imaginar, devanear, intuir, sentir. Ninguém será um bom escritor se não aceitar — e tirar partido — das pressões a que a realidade está sempre a submeter seu texto. O compromisso do jornalismo é com a verdade: mas a verdade é instável, é relativa, é complexa e múltipla. Já o escritor nada deve, em princípio, a ninguém, pois está entregue às oscilações de seu mundo interior e de sua subjetividade. Contudo, mesmo que não deseje isso, mesmo que não admita isso, um escritor é sempre um prisioneiro das circunstâncias.
Jornalista e escritor são dois seres que se perfilam em lados opostos de um mesmo espelho. O jornalista estaria fora dele, enquanto o escritor habitaria seu interior. Mas só é possível pensar em um exterior se admitimos a existência de um interior. Em resumo: jornalista e escritor estão ligados para sempre. Ainda que não admitam isso, ainda que reneguem esse vínculo, eles são irmãos de sangue. Pelo menos assim é no meu caso, pelo menos assim vejo as coisas.
NOTA
O texto Jornalismo e literatura foi publicado originalmente no blog A literatura na poltrona, do caderno Prosa, do jornal O Globo.