Hilda Hilst diante de Plutarco

Cada escritor escreve o que carrega dentro de si. Escreve o que é
Hilda Hilst, autora de “O caderno rosa de Lori Lamby”
01/04/2013

Enquanto o mundo se agita e a vida parece mais acelerada e impossível, agendas de trabalho explodindo feito bombas, dias que já não cabem mais em suas vinte e quatro horas, releio — para buscar algum equilíbrio — A serenidade interior, breve ensaio do filósofo grego Plutarco. Ganhei o livro de um amigo, em uma delicada edição francesa, no formato de bolso. Ao entregá-lo, meu amigo (de juventude, a quem amo muito) se limitou a dizer: “Leia, você está precisando”.

Sentia-me bastante bem naquele fim de tarde, imerso em um resto de sol carioca, o Rio borrado de vermelho, algo que sempre me anima. Mas alguma dor secreta devia escorrer de meu rosto. O cansaço em nossos dias é estável, imóvel, monótono, embora opressivo: minha dor não devia vir dali, iludi-me. Vasculhei a mente em busca de outras origens. Concluí que talvez viesse dali mesmo, dessa vida acelerada que somos obrigados a viver e nós, como viciados, já nem sentimos.

Eu já lera o ensaio de Plutarco na juventude — o que é coisa bem diferente. Eu era outro homem e, em conseqüência, tratava-se de outro livro. Já não me lembrava mais do que tinha lido. Como não sou um leitor freqüente de filosofia, recorro ao Garzanti, o conhecido dicionário italiano, em busca de notícias a respeito do filósofo. Viveu entre os século 1 e 2 depois de Cristo, morrendo aos 74 anos de idade, em Delfos, na Grécia. Foi historiador, ensaísta, biógrafo, levando uma existência intensa. Tornou-se sacerdote do mais alto grau do oráculo de Delfos. Não se sabe muito sobre sua vida pessoal. Foi, sobretudo, um homem que viveu para pensar. Defendeu a diversidade, a paciência e a liberdade interior. A quietude esteve sempre no centro de suas preocupações.

Parece um pensador muito adequado para nossos tempos, concluo. Detenho-me em particular em dois capítulos do livro: o nono (“Apreciar os bens que possuímos”) e o décimo terceiro (“Conhecer a si mesmo e não forçar sua natureza”). Começo então pela apreciação do que possuímos. Sempre que pensamos no que temos, pensamos imediatamente no que não temos, Plutarco nos lembra. Não tenho tempo para ler tais livros, para visitar esse e aquele lugar, para me dedicar a esse ou àquele divertimento, para me arriscar nesse ou naquele projeto pessoal. Não tenho — mas o que tenho? Se não tenho tempo, o que faço de meu tempo?

Escritores conhecem esse sentimento de opressão e divergência: busca-se uma coisa, deseja-se escrever algo, mas se encontra outra e se escreve coisa bem diferente. Tempo perdido, ou ganho? Cada escritor escreve o que carrega dentro de si. Escreve o que é. Se não arrancar algo do que “lhe sai”, não adianta seguir em frente. A vida é o que acontece enquanto pensamos em outras coisas, alguém me lembrou outro dia. Sugere Plutarco que partamos disso: do que temos e do que somos. E mais nada. E que permaneçamos aí. Firmes, sem arrastar o pé, dentro de nós mesmos.

Plutarco não foi um pensador da arte, e sim da vida — foi um “moralista”, como dizem alguns, usando uma palavra hoje não muito adequada. Escreve: “A maior parte dos homens se crêem obrigados a destinar às poesias, às pinturas, às esculturas a atenção mais cuidadosa e o exame mais minucioso. Mas de sua própria vida, onde existem muitas coisas que não são desagradáveis de ver, eles não se ocupam”. A vida passa e, no entanto, não a observamos. Em nosso século a vida acelera, dispara, enlouquece, e ficamos para trás. Ou somos simplesmente arrastados por ela, como uma carga. Carga de nós mesmos, pois a vida somos nós.

Olhar para si — sem exaltações, mas também sem modéstia —, observar a si mesmo e a sua existência, eis um primeiro passo, sugere Plutarco, para se alcançar a serenidade. E aqui salto para o capítulo 13 de A serenidade interior: da mesma forma, não devemos forçar a natureza do que somos, isto é, não nos obrigar, ou desejar, ser o que não somos. Em vez de desejar o distante, consagrar nossa atenção a um objeto único e próximo, isto é, àquele pelo qual temos uma “atitude natural”. Cada um sabe de que objeto se trata. Ainda que prefira não saber — e nos dias de hoje, na pressa, tantas coisas preferimos desconhecer.

Não posso me conter: a literatura — pequeno foco de minha própria vida — me chega pelas mãos de Plutarco. Lembro-me, aqui, em particular, de Hilda Hilst, que certa vez me disse que o mais difícil para um escritor é observar-se no espelho. Não pela vaidade: já idosa, Hilda não tinha pudor algum em definir a si mesma como “uma velha bruxa”. Não era disso que me falava, mas de outra coisa bem mais grave e pior: ter a coragem de olhar (como sugeriu Plutarco) aquilo que se é. E (mais difícil ainda) aceitar-se. Partir disso, não só para viver, mas para fazer o que se deve fazer. Para ser o que se é.

Hilda era uma mulher sensível, sentia perseguidores à sua volta, achava-se incompreendida e, mesmo, desprezada. Já era uma “escritora consagrada”, mas de que lhe servia, se a solidão continuava igual? Nada disso a impediu, mesmo nos momentos de maior desânimo, de apostar em sua escrita. Era sua “natureza”. Talvez se possa falar em “destino”, talvez até em “sintoma” — como o inchaço que aponta uma infecção em um pé. As palavras nela latejavam. Não podia viver sem o contato intenso com a escrita. Era sua natureza. Era seu destino, e dele nunca abdicou, mesmo nas horas de desânimo maior.

Talvez não tenha sido uma mulher serena — sou obrigado a admitir agora, contrariando a tese de Plutarco. Provavelmente não foi mesmo. Quem via aquele espírito em ebulição, aquela mulher sempre à beira — de quê? de um abismo? —, jamais pensaria em serenidade. Lendo Plutarco, porém, refaço a visão que dela guardo. Em Hilda, a agitação emocional nunca atrapalhou a certeza da vocação. Escreveu e escreveu e escreveu, mesmo nos piores momentos, mesmo quando não acreditava muito no que escrevia. Foi, sem dúvida, uma grande escritora. Seus textos (tão esquecidos) estão aí para quem duvidar.

Volto a Plutarco — que de Delfos me carregou até a Casa do Sol, na periferia de Campinas. Dizia o filósofo que devemos buscar um “objeto exclusivo”, que se torne o coração de nossas vidas. Acreditava que a dispersão é um grande mal. Insisto em Hilda, que se isolou em sua chácara, “apagou” o mundo à sua volta, para se dedicar — como uma amante ciumenta — a seu único e grande amor: a palavra. Tinha em seu terreno uma figueira, que afirmava ser mágica. A ela se abraçava nos momentos de maior desânimo, e diante dela se interrogava nas horas de dúvida mais feroz. Era seu oráculo: ainda que sem palavras, ainda que em silêncio, a árvore lhe respondia. Era, assim como a literatura, um “objeto exclusivo”, investido de todo encanto, capaz de transportá-la não para longe, não para mundos distantes, mas para dentro de si. Hilda fez de Campinas a sua Delfos. Não sei se foi uma leitora de Plutarco, mas poderia ter sido. Digamos que foi.

NOTA
O texto Hilda Hilst diante de Plutarco foi publicado no blog A literatura na poltrona, mantido por José Castello, colunista do caderno Prosa, no site do jornal O Globo. A republicação no Rascunho faz parte de um acordo entre os dois veículos.

José Castello

É escritor e jornalista. Autor do romance Ribamar, entre outros livros.

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