Graciliano: a força do nome

Graciliano Ramos tinha uma imensa dificuldade para acreditar em si
Ilustração: Bruno Schier
24/05/2016

O episódio aconteceu em meados dos anos 1930. Graciliano Ramos já era, naquele momento, o autor de dois importantes romances: Caetés, de 1933, e São Bernardo, de 1934. Trabalhava no terceiro, Angústia, que seria publicado em 1936. Em seu apartamento, no Rio de Janeiro, recebe o jornalista Paulo de Medeiros, de A Gazeta, para uma entrevista. Os dois se sentaram para uma conversa que o repórter, por certo, não esperava tão franca. “Então você quer saber como se faz um romance”, Graciliano se antecipou, fazendo ele mesmo a primeira pergunta. E se adiantou na resposta também: “Mas eu ainda não escrevi nenhum romance”.

O repórter sentiu-se obrigado a lembrar-lhe, então, dos dois romances já publicados. Graciliano foi quase ríspido: “Mas não são romances. São duas borracheiras”. Atribuir a escrita dos dois livros a duas supostas bebedeiras foi, de fato, uma resposta estranha. Mas que mostra muito bem quem era Graciliano Ramos: um homem que, como escritor, tinha uma imensa dificuldade para acreditar em si. Não tive experiências de leitura pública destes dois primeiros romance. Mas há alguns anos, em Curitiba, fiz uma oficina de leitura de Angústia, o terceiro romance. Recordo com que aflição, mas também com quanto espanto o grupo de leitores se entregou ao livro. Ninguém conseguia parar de ler. O romance — que é lento, introspectivo, cerrado — arrastou a todos.

Para desviar-se de seu tempo, para dentro dele tomar sua própria posição, um escritor precisa, antes de tudo, de coragem intelectual. Isso nunca faltou a Graciliano. Muito menos, um segundo elemento crucial, para que o desvio não se pareça com uma simples fuga: talento. É uma das coisas que mais admiro em Graciliano Ramos: sua voz forte. A segurança com que fala de si e também o desprezo pelas aparências e pelas ilusões literárias. A intransigência com que afirma seu lugar, sem engrandecê-lo, mas também sem deixar de ocupá-lo. Um escritor deve ser intransigente, antes de tudo, com suas próprias palavras. Com seu texto. Nele, ele faz o que quer. Nele, segue a direção que bem lhe entender, sem tomar partidos, ou sem se preocupar com grupos, ou com filiações.

A história vivida por Paulo Medeiros me volta durante uma releitura das Conversas com Graciliano Ramos, organizada por Ieda Lebensztayn e Thiago Mio Salla para a Record. O livro foi lançado em 2014 e guarda muitas preciosidades a respeito não só da personalidade, ou do estilo, mas da “alma” do escritor. Avanço algumas páginas e chego a “O modernismo morreu?”, artigo de Osório Nunes publicado no Dom Casmurro. Mais uma vez Graciliano Ramos trata de nos surpreender. Com seu nome inscrito, grosso modo, no grupo de romancistas do modernismo brasileiro, ele é enfático: “Não sou modernista. O modernismo morreu em 1930”. Mais uma vez surge o Graciliano apreciador da exatidão e da precisão. Sem nenhum pudor ou vaidade, ele vai mais adiante. “Não se pode fixar, rigorosamente, este ano (1930) como o do seu aparecimento. O que se observa é que, pelo menos nas cercanias de 30, o modernismo surgido com a Semana de Arte Moderna (de 1922) desapareceu”.

Para desviar-se de seu tempo, para dentro dele tomar sua própria posição, um escritor precisa, antes de tudo, de coragem intelectual. Isso nunca faltou a Graciliano.

Graciliano sempre foi um grande apreciador da clareza. Sempre gostou, também, de colocar limites nítidos entre as coisas do mundo. Foi um inimigo do vago e do impreciso. Por isso mesmo, na mesma conversa, sente-se obrigado a tomar distância em relação a Oswald de Andrade e a Mário de Andrade. Não poupa as palavras: “Mário e Oswald tentaram o romance, mas sem êxito”. As obras do modernismo como um todo também não o interessam. “Não vejo outra realização de vulto que não a libertação das cadeias do espírito. Creio que é seu melhor fruto”. Um pouco mais à frente, é duro novamente: “O modernismo fracassou. Pois fracassada está uma rebelião literária cujos soldados acabam na Academia”. Quando fala especificamente de Mário, é mais áspero ainda: “O próprio Mário de Andrade está escrevendo direitinho, bem comportado. Só de longe em longe surgem umas expressões que lhe são típicas”. O desprezo por Oswald é ainda maior.

Já naquele momento, Graciliano precisa de coragem, sobretudo de muita coragem, para afirmar uma posição. Anti-modernista? Provavelmente não. Mas diferente. Que posição? Sua própria posição, de escritor individual e dono de sua escrita particular. Em 1949, numa entrevista à Folha da Manhã, ele radicaliza suas posições. “Não gosto de nenhum de meus livros”, diz Graciliano sem, no entanto, renegá-los. Não se trata de apagar uma ficção, mas de não lhe conferir um tamanho que a ultrapasse. Trata-se de encontrar — e defender — sua própria estatura. Em uma expressão que muito me agrada: de cair em si. Tornar-se dono de si mesmo e de seu lugar. Fugir das ênfases e dos exageros. Da retórica, que a tudo borra e anula. “Vivo bem onde estou. O que não quero é mudar-me”, prossegue Graciliano falando não só de sua residência, mas, sobretudo, de um temperamento. Quer ficar dentro de si mesmo: mesmo quando se diminui, gosta de ser quem é.

“Até hoje não me considero escritor nem jornalista. Fui obrigado a escrever porque não tinha outro ofício”, ele prossegue na mesma entrevista. Começou a escrever aos dez anos de idade, como redator de um jornal para crianças editado em sua cidade natal, Quebrangulo, no interior de Alagoas. O jornal tinha periodicidade quinzenal e era impresso em Maceió, com duzentos exemplares. Admite que, antes de começar a escrever, tentou outros ofícios, mas “todas as portas estavam fechadas”. E é direto: “Gostaria de poder viver sem trabalhar, como muita gente”.

Sobre Caetés, seu romance de estreia — imitando o conselho de Franz Kafka ao amigo Max Brod —, ele diz: “Também Caetés deveria ter sido queimado”. Antes dele, escreveu outros romances, mas queimou todos. A severidade que tinha consigo e com sua ficção deveria servir de espelho a tantos escritores apressados e “práticos” de hoje. Seria impossível imaginar Graciliano escrevendo um romance de encomenda. Ou seguindo à risca prazos, fórmulas, ou padrões editoriais, como fazem tantos contemporâneos. Acima do adjetivo, o nome — o substantivo. Nunca abdicou de seu ritmo, de seu caminho e de si mesmo. Sustentou, sempre, sua própria voz e sua própria assinatura. Por isso se tornou Graciliano Ramos.

José Castello

É escritor e jornalista. Autor do romance Ribamar, entre outros livros.

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