Sempre que me perguntam o que penso a respeito das relações entre a ficção e a realidade, uma primeira dúvida me vem: mas o que, afinal, é a realidade? Corro ao dicionário, que a define como “aquilo que existe efetivamente: real”. A definição não me satisfaz. Muitas coisas que, em geral, excluímos de uma visão realista do mundo — sonhos, emoções, intuições, superstições, crenças, devaneios —, sem dúvida, efetivamente existem, embora não sejam objetos materiais, mas imateriais.
A constatação me leva a considerar que a realidade, tal qual nós a entendemos, está sempre misturada com esses objetos imateriais. Talvez eles sejam a sua “cola”. Isso me leva a pensar que ela, a realidade, tem, portanto, seu lado “irreal”. Ou para usar uma palavra que me parece mais precisa: tem seu lado “ficcional”. Sempre que somos convocados a relatar nossas vidas, nós preenchemos furos, esquecimentos, vazios, incoerências, com alguma ficção. O mesmo se dá quando, pela manhã, resolvemos relatar um sonho: invariavelmente — já que sonhos são fluidos e fugidios — nós os “editamos”, isto é, preenchemos suas lacunas e falhas com elementos da imaginação e da ficção.
A própria noção do Eu está atravessada pela ficção. Quando afirmo que sou isso, ou sou aquilo, um tanto de imaginação (de ficção) entra em jogo. Até o jornalismo, reino por excelência da objetividade (fatos, nada além de fatos, dizem os repórteres), até ele está, sempre, comprometido, com soluções imaginárias ou ficcionais. Uma das mais belas demonstrações desse fato aparece em Rashomon, o clássico genial de Akira Kurosawa. No filme, várias versões de uma mesma história se superpõem, lutam entre si pelo status de Verdade, disputam a supremacia da realidade. Mas terminamos de assisti-lo sem saber, ao certo, o que “realmente aconteceu”. Tudo o que temos são partes da Verdade, isto é, realidades parciais ou em potência. Ficções: eis tudo o que temos.
Logo, pensar as relações entre realidade e ficção é, de certa forma muito sutil, pensar as relações entre a ficção e a própria ficção. De um lado, a ficção oficial guardada nos livros — a literatura. Aquele que sustenta, com certa tranqüilidade (mas apenas relativa) o seu nome. De outro, a realidade em que nos baseamos e com a qual sobrevivemos, ela também devastada pelas interferências e turbulências da ficção. A questão, portanto, é saber como a literatura (ficção contida nas narrativas literárias), segunda ficção, mais sutil e elaborada, dá conta da ficção primeira, aquela que de forma caótica encoberta e envolve as coisas do mundo real.
Daí que o escritor trabalha, inevitavelmente, sobre o fio de uma navalha — a “faca só lâmina” de que fala o poeta João Cabral. Entre uma ficção que sustenta seu nome e outra que o esconde, ou pelo menos não o expõe, entre essas duas ficções posta-se e trabalha o escritor. Suas narrativas resultam em uma espécie de jogo de ficções. Ele é como um alfaiate, que desdobra a ficção infiltrada em nossas vidas em outras ficções, mais ordenadas, bem costuradas (mais “editadas”), que resultam, por fim, em narrativas e em livros.
Creio, por isso mesmo, que a literatura é muito mais potente do que, em geral, nós imaginamos. O que ela faz? Do que é realmente capaz? A literatura descerra a grande cortina de ficções que recobre nosso mundo dito real, não para apagá-la, mas para ampliá-la. A literatura desdobra, torna mais vastas e costura essas ficções de que somos feitos. Nelas aponta novos arranjos e novas possibilidades. Abre janelas, descerra novos postos de observação, outras perspectivas e maneiras de olhar. Amplia, enfim, a ficção que já estava ali, todo o tempo, latente naquilo que chamamos de realidade.
Não existimos sem a ficção. Arrisco-me a dizer mais: somos filhos da ficção. Todo o trabalho do amadurecimento humano é a construção de uma identidade ficcional, sob a qual nós nos sustentamos para atravessar o deserto da existência. Escolhemos carreiras, parceiros amorosos, amigos; cultivamos obsessões, fobias, paixões, construímos destinos. Somos os autores de nós mesmos — ou, pelo menos (pois nosso mundo mecanizado, opressivo e dogmático sempre vai contra isso) deveríamos ser.
Não: a ficção não é sinônimo de mentira, de falsificação, de fraude. Em vez de falsificar, ela alarga e potencializa o mundo. Em vez de mentir, ela inventa novas maneiras de dizer as coisas do real. Os escritores são, apenas, mais sensíveis a isso. Eles tiram partido disso, e transformam nossa precária e sutil realidade em maravilhosas narrativas. São os escritores, enfim, que têm a coragem extrema de enfrentar a neblina do real.
NOTA
O texto Ficção e realidade foi publicado no blog A literatura na poltrona, mantido por José Castello, colunista do caderno Prosa & Verso, no site do jornal O Globo. A republicação no Rascunho faz parte de um acordo entre os dois veículos.