Esbarro, distraidamente, em versos da poeta polonesa Wislawa Szymborska, traduzidos por Regina Przybycien para a Companhia das Letras. Estão em Poemas, livro recém-chegado às livrarias. Versos que — eis o que me assombra — parecem a mim destinados. Como se eu os recebesse em uma carta lacrada de que fosse o único destinatário. E eles contivessem um segredo que não diz respeito a mais ninguém, a não ser a mim mesmo. Como se a octogenária Wislawa me conhecesse, não de outras décadas, mas de outros instantes. Fosse bem mais que minha amiga íntima: pudesse ler minha alma.
Os versos, que me assaltaram em uma tarde cinzenta e desanimada, são assim: “A vida na hora./ Cena sem ensaio./ Corpo sem medida./ Cabeça sem reflexão”. E, saltando uma linha, o poema — batizado A vida na hora — prossegue: “Não sei o papel que desempenho./ Só sei que é meu, impermutável”. Não serei, por certo, o único a vestir esses versos com o sentimento de um corte impecável. Versos “sob medida”, como paletós cortados por um rigoroso alfaiate.
De que falam esses versos? Do insubstituível. De algo que tenho, e que não é grande coisa, é absolutamente comum e, no entanto, me distingue. Aquilo que você tem, você que me lê, algo a que nunca deu importância e, contudo — agüente isso firme! —, é a sua marca. Estamos todos, como diz Wislawa, “despreparados para a honra de viver”. Consideramos, em geral, que a vida é incômoda, ou difícil, ou mesmo indesejável — e sonhamos com outras vidas, inexistentes. Não percebemos a grandeza de ser quem somos. Nenhum gênio, ninguém especial, nenhuma glória, ou fortuna: só (mas será “só”?) uma pessoa comum. Só o que cada um é capaz de ser. O que cada um, apesar de si, continua a ser. Ou, porque tudo flui no grande rio do Um, a “re-ser”.
Nessa direção aponta a poesia: o particular. Uma pinta discreta sob os olhos, sobrancelhas mais caídas, algumas rugas em um lugar inesperado, um gesto inconfundível embora banal, a marca que algum sentimento deixou, quase invisível, no olhar. A poesia fala do Um. Impiedosa, Wislawa fala de si mesma: “Meu jeito de ser cheira a província./ Meus instintos são amadorismo”. Fala de si, ou da poeta que inventou para, enfim, escrever versos? Esta “voz lírica” é Wislawa, ou sua máscara? Pouco importa. Importa que se trata de um semblante inconfundível. Você lê três ou quatro palavras e já sabe: é Wislawa quem escreve.
Disso fala, sempre, a literatura: trabalhamos com materiais cuja procedência desconhecemos. Defrontamo-nos com eles, sem ensaios, sem estudos, sem antecipação. “Se eu pudesse apenas praticar uma quarta-feira antes”, a poeta se lamenta. “Ou ao menos repetir uma quinta-feira outra vez!”. Mas não: a vida não suporta a repetição, ou o enquadramento. Na vida é assim: 1 + 1 = 1. A vida desmente a aritmética e suas operações. Você está condenado ao único. Eu também. Todos estamos. Ninguém se livra de si mesmo e isso, a poeta assinala, é viver. É também escrever.
Adverte ainda: “É ilusório pensar que esta é só uma prova rápida feita em acomodações provisórias”. Claro: tudo é transitório. Mas, no vão de cada momento, só cabe isso mesmo, o momento. Em cada homem, ou mulher, só cabe um homem, ou uma mulher. Tarefa do poeta: suportar quem é. Destino do poeta: fazer deste “quem é” a sua escrita. Como isso exige coragem! Dentre todos os números, Wislawa nos mostra, o 1 é o número mais perigoso.
Termina Wislawa: “E o que quer que eu faça, vai se transformar para sempre naquilo que fiz”. Eu sou o que sou, você é o que é, e é nisso que reside a única grandeza. Pequena e ridícula grandeza, de ser tão pouco. De ser — e isso deveria bastar. Sem ensaios, sem repetições, sem preparações, sem métodos. Sem prescrições de especialistas, ou roteiros de segurança. Os poetas conhecem esse segredo que conduz ao que chamamos de destino. O destino? Ele vem inscrito no corpo. Nós o carregamos a cada suspiro, a cada tropeço, a cada falha, a cada alegria, ou desesperança. Na noite escura, ou no dia fervente. Ele é nosso palco.
Alerta a poeta: estamos sempre no momento da estréia. Passa um segundo, e estamos a começar mais uma vez. Estamos a estrear. O presente é esta estréia que não termina. Esse 1 + 1 que resulta sempre em outro 1, e outro 1, e mais outro. A vida é esta sucessão de mortes e renascimentos. Este 1 que se repete e, no entanto, é sempre outro. Essa marca que, a cada passo, se transforma em outra marca, e mais outra, e ainda outra — e elas jamais se somam! Isso é a poesia.
NOTA
O texto Ensaios não existem foi publicado no blog A literatura na poltrona, mantido por José Castello, colunista do caderno Prosa & Verso, no site do jornal O Globo. A republicação no Rascunho faz parte de um acordo entre os dois veículos.