Meu mestre João Rath me contava muitas histórias do Rei Mané, um barbeiro carioca que, um dia, foi traído pelas duas filhas. Aos setenta anos, preparando-se para morrer, ele doou para as filhas sua casa em Cascadura e ainda sua parte da Barbearia Bigode de Ouro, no Lins. Elas o expulsaram de casa e o largaram, como um cão velho, na estação de trem.
Rath se assombrava com a semelhança injusta entre a história de Rei Mané e a tragédia do Rei Lear, de Shakespeare. Dizia: “Afirmam que Shakespeare reencarnou no Lins de Vasconcelos”. No Lins de Vasconcelos morava Isolda, a mulher do Rei Mané, que o trocou por um bombeiro hidráulico mais jovem e mais musculoso.
A ideia de que William Shakespeare pudesse ter reencarnado em uma mulher peituda, suada e que fedia a cebola parecia a Rath inaceitável, mas verdadeira. “Isolda só lê revistas”, me disse. “Mesmo assim, reencenou, passo a passo, a tragédia de Shakespeare.” Eu era um rapaz tolo, que nunca tinha lido Shakespeare, nem conhecia a história do Rei Lear, logo essas analogias me escapavam.
Em uma sexta-feira, quando o Diário de Notícias fechou mais cedo, Rath me convidou para uma excursão científica ao Lins. “Temos que interrogar aquela víbora”, ele me disse. Precisava de pistas para localizar o Rei Mané que, desde sua expulsão de casa, morava nas ruas de Cascadura. O plano de Rath era, primeiro, interrogar a “rainha”, como ele a chamava, e depois ir a Cascadura em busca de seu velho amigo.
Isolda Nascimento nos recebeu de camisola, mal coberta por um peignoir de seda. “Procuramos por Manuel Nascimento”, Rath se limitou a dizer. “Não tenho relação alguma com esse sujeito”, ela disse. Seu hálito fedia a açafrão. Apesar da repulsa, Rath insistiu que precisava de alguma pista. Sem pudor, Isolda admitiu: “Quando o largamos na estação de trem, ele vestia um terno marrom. É tudo o que sei dizer”. E bateu a porta sem se despedir.
Diante do fracasso de nosso interrogatório, só nos restava ir até a estação de trens de Cascadura. A avenida Suburbana estava engarrafada. Acabara de chegar um trem vindo de Quintino. Começamos a circular pela estação. “Procurando a esmo, nunca chegaremos ao Rei Mané”, Rath me disse. “Precisamos de pistas e de ciência.” Mas que pistas? E que ciência? “Talvez a gente deva começar procurando nas barbearias.”
Começamos pela Barbearia Foster, onde ninguém o conhecia. Seguimos para a Barbearia dos Irmãos Brás, mas nem Pedro, nem Catatau tinham ouvido falar do Rei Mané. Até que, na rua Nerval de Gouveia, chegamos à Barbearia Mestre dos Disfarces. “Só pode ser aqui”, Rath comentou, cheio de entusiasmo. “Onde mais um fugitivo se esconderia?”
A rigor, Mané não era um fugitivo, mas um despejado. Rath, porém, tinha o hábito de acrescentar um tempero dramático às suas histórias. Não o contradisse, aceitei a tese falsa do fugitivo. Não podia negar que, ao não ser encontrado, Rei Mané fugia. Escapava de Rath e de sua obsessão pela verdade.
João Rath tinha uma tese perigosa a respeito da verdade. Proclamava: “A verdade é sempre falsa. Ou nós a inventamos, ou ela não existe”. Ao buscar o Rei Mané, ele queria inventar uma vida para seu amigo. Me explicou: “O Mané é um sonso, acho que ele nem sabe que existe”. Era preciso que Rath afirmasse sua existência. Só assim Rei Mané passaria a existir. Era essa a nossa missão suburbana: dar vida ao Mané.
Chegamos ao Mestre dos Disfarces. Um barbeiro — ou alguém disfarçado de barbeiro — nos atendeu. Apresentou-se com o nome bíblico de Zelote. Sim, Rei Mané passara na barbearia em busca de emprego, mas não havia vagas. Passou uns dias sentado entre os fregueses, no salão de espera, pois não tinha para onde ir. “Eu lhe servia café com bolachas. Era tudo o que podíamos lhe dar.”
Seguindo à risca o nome da barbearia, Zelote sugeriu ao Mané que, já que fracassara como Mané, se disfarçasse também. “Eu mesmo não sou barbeiro, só finjo que sou barbeiro. Na verdade, sou trapezista, mas meu circo faliu.” Deixara o passado para trás — condição primeira para aqueles que optam pelo disfarce. Lembrei-me, então, da frase de Svetlana Geiger, a grande tradutora russa, quando falou de seu trágico passado: “Suprimi aquilo, deixei trancado, como na história do Barba Azul”.
Quantas identidades perdidas se escondiam detrás daqueles disfarces? — me perguntei. Como na história do conde Barba Azul: quantas mulheres degoladas se ocultavam detrás daquelas portas? Larguei meus devaneios quando Rath, de súbito, como era seu estilo, ordenou: “Vamos caminhar pela avenida Suburbana. Só caminhando chegaremos ao Mané”.
Àquela hora, a avenida estava engarrafada. Os lixeiros ainda não tinham feito seu trabalho, a calçada fedia. Mas avançamos, céleres, rumo a quê? “Se ele está disfarçado, qualquer desses homens que passam por nós pode ser o Mané”, Rath filosofou. O quitandeiro que vendia tangerinas sobre uma bancada de madeira podia ser o Mané. O sacerdote que subia as escadas do comércio também. Até a baiana das cocadas podia ser o Mané. Estávamos perdidos.
Até que Rath, meu querido mestre, enunciou a frase assombrosa: “Começo a me perguntar seu eu mesmo, João Rath, não sou o Rei Mané, e apenas me esqueci disso”. A hipótese era terrível. Alargando-a, eu podia cogitar se eu mesmo, José, não seria o rei perdido. Tudo se embaralhava. As hipóteses nos embriagavam. A realidade perdia suas bordas. “Vamos parar e tomar um café”, sugeri, na esperança de alguma paz.
Notei que meu mestre suava muito, e também tremia. A qualquer momento, poderia derramar seu café sobre o colo. Ocorreu-me dizer: “Se todos nós podemos ser o Mané, nenhum de nós é o Mané”. Não sei de onde tirei essa conclusão. Rath, meu mestre, abriu um sorriso. De alegria, de alívio. Afagou meus cabelos e disse: “Está tudo resolvido. Vamos pegar um táxi para casa”. Perguntei-lhe qual era sua conclusão: “Acho que preciso de uma aspirina”, me disse. E chamou o garçom. Na mesa ao lado, um velho, vestido de policial, nos observava. Seria o Mané?