Cuidado: homem perigoso

O jovem magro e frágil começa a dançar, com piruetas suaves de bailarino, em meio à imundícia
Ilustração: Aline Daka
01/12/2022

Venho a Olaria, subúrbio do Rio, para visitar uma amiga, internada no Hospital Balbino. Confundo-me e chego duas horas antes do horário de visitas. Para fazer tempo, caminho sem destino pelo bairro. Sem pressa, observo a tristeza das pessoas, as casas descascadas presas em jardins estreitos, os portões roídos e tombados. A paisagem frágil, porém, desperta em mim um tipo de felicidade. A alegria de ver que, apesar de tudo, o mundo resiste.

Até que, diante de um casarão de esquina, vejo a placa: “Cuidado: homem perigoso”. Que alertem a respeito de cães ferozes, de cercas elétricas assassinas, de muros cobertos de espinhos faz sentido. Mas a respeito de um homem? Talvez seja um leproso, imagino. Talvez alguém que sofre de hidrofobia — o mal que costumamos chamar de raiva. Será um alerta a respeito da presença de um louco?

Algo me faz parar. Antes de tocar a campainha, saco — como uma arma branca — minha carteira de jornalista. À senhora de robe que me recebe, eu explico que faço uma reportagem sobre a vida no subúrbio e que a placa de advertência me chamou a atenção. “Não é da sua conta”, ela diz, com rudeza. “A placa é justamente uma advertência para que ninguém se aproxime.” Argumento que nós, jornalistas, estamos sempre onde a maioria das pessoas prefere não estar. Incêndios, tiroteios, terremotos, enchentes nos atraem. A catástrofe é nosso objeto.

Sem dizer mais nada, a mulher se vira e passa a observar os fundos do quintal. Tenta conferir alguma coisa, captar algum sinal. Olha para umas árvores murchas, que escondem um cercado, coberto por arame. Agora ouço galinhas que, desesperadas, cacarejam. “O que o senhor está esperando?” — ela me pergunta. Aponta para a calçada, os dedos enrugados cheios de anéis, as unhas de falcão. A toalha, enrolada em sua cabeça, está prestes a desabar. Mas ela não se rende.

“E se eu lhe pagar para entrar?” — proponho. Ela se espanta. Pensa e compara: “Como fazem nos museus?”. Silencia, pigarreia para ganhar tempo e completa: “Lembre-se de que nos museus não permitem fotos”. Sem pensar no que digo, eu concordo. Aceita a primeira mixaria que lhe ofereço. Enfia o dinheiro no bolso do robe e me adverte: “Eu servirei de guia, o senhor só fará o que eu mandar”. Só faltam os chicotes e as algemas. É uma domadora de quintal.

Atravessamos uma sala de jantar escura, que fede a terebentina. Móveis antigos, um sofá cheio de furos, telas desbotadas nas paredes. O corredor ainda é mais escuro. “Cuidado para não escorregar, eu estava lavando o chão”, me diz. Sem entender onde piso, seguro-me nos móveis, que estão cobertos de gordura. Minhas mãos deslizam. Sinto nojo, mas não vou recuar.

Na cozinha há um pouco mais de luz. Pilhas de louças sujas, pacotes e vasilhas abertos sobre a mesa, uma geladeira antiga que grunhe como um porco esfaqueado. E logo depois o quintal, maltratado e sujo, onde dois meninos correm. “Vamos saindo, temos visitas”, ela ordena. Os garotos a ignoram. Um deles grita: “Velha burra” e desaparece. A agressão, que se confunde com a intimidade, a obriga a dizer: “São meus netos. Eu os odeio”.

Avançamos entre árvores, vasilhames de lixo, latões de água suja. “Logo o senhor verá”, anuncia. “Mas lembre-se: nada de fotos.” A gritaria das galinhas aumenta. O fedor de fezes. De porcaria. Logo chegamos diante de um engradado com divisórias de arame. São muitas aves para um espaço tão estreito. “Se quiser, pode entrar. É por sua conta e risco. Eu o espero aqui fora.” Antes, exige que eu deixe com ela meu celular. “É uma garantia de que não me trairá.”

Entro. As galinhas, assustadas, se encolhem nos poleiros. O chão está imundo, cheio de poças. Não sei o que faço aqui. Até que vejo o rapaz. Sim, um jovem homem. Cabelos e barbas imensos, ele se enrola em um cobertor, ou esfregão. Talvez sejam só tiras de papelão. As galinhas o ignoram. Também ele não se importa com minha presença. Permanece sentado sobre um caixote, dando goles em uma caneca de lata.

Tem um olhar pacífico e triste. Não vejo perigo algum. Não há risco, ou ameaça. Será mesmo a esse pobre rapaz que a placa da entrada se refere? “Cuidado: homem perigoso”, ela diz. Contudo, perigoso para quem? “Bom dia”, eu arrisco. Ele não ergue a cabeça. Como se eu não estivesse ali, se limita a dizer: “Há dias que são sim, outros dias que são não”. Pigarreia, dá mais um gole, e repete a frase maldita.

Só me resta perguntar: “Hoje é dia que é sim, ou dia que é não?”. Minha pergunta o surpreende e ele se cala. Ergue a cabeça e passa a me examinar. Tênues faixas de sol se infiltram no galinheiro. Traçam riscos de luz no ar, como hologramas. “Há mais alguém aqui?” — pergunto, na esperança de que, enfim, o grande perigo apareça. “Vivo sozinho”, ele responde. “Há dias que sim, outros dias que não, mas estou sempre aqui.”

Penso em me sentar, mas onde? De pé, diante daquele rapaz mirrado e rouco, incorporo a figura do agressor. Ele parece me temer e se encolhe um pouco. Não levanta a voz, só balbucia. “Não tenha medo”, eu digo, “vim para uma visita rápida”. Serei eu o homem perigoso que a placa anuncia e que o rapaz tanto teme? Haverá dentro de mim uma ferocidade que desconsidero?

“Não tenho nada para lhe dar”, ele diz. “Nem essas galinhas são minhas.” Pergunto o que diabos faz naquela pocilga. “Eu moro aqui”, responde. “A velha me colocou aqui e não posso mais sair.” Agarrando-se à caneca, ele diz: “Há dias que sim, e dias que não, mas nunca saio”. Ficamos quietos. Espero — espero talvez que ele perca o medo. Até que o rapaz começa a cantarolar. Uma canção antiga e bela. Acho que a conheço. Cruzo os braços e ouço.

Então, em movimentos muito lentos, mas firmes, ele enfim se ergue. Agora vejo que é um garoto frágil, embora alto. Abre os braços e balança as mãos. Tenta levantar voo? Mas, como as galinhas que não podem voar, também ele fracassa. Não sei se fracassa, pois o voo logo se transforma em um rodopio. E em outro. E mais um. Começa a dançar, com piruetas suaves de bailarino. Dá saltos entre a nojeira. Ignora a miséria. Encostado a uma divisória de arame, eu o aplaudo.

José Castello

É escritor e jornalista. Autor do romance Ribamar, entre outros livros.

Rascunho